SÁBADO

Nuno Júdice (1949-2024)

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Autor premiado, da poesia ao ensaio, passando por romance e teatro, foi conselheir­o cultural, professor e descobriu um soneto inédito de Luís de Camões

Foi na freguesia da Mexilhoeir­a Grande, concelho de Portimão, a 29 de abril de 1949, que nasceu Nuno Manuel Gonçalves Júdice Glória. Os primeiros anos de vida acabaram por ser passados naquele Algarve a curta distância do Atlântico e da ria de Alvor, onde a herança árabe estava sempre presente, como recordou em entrevista ao Diário de Notícias em 2022: “...quando fui pela primeira vez a Marrocos senti-me de repente no Algarve que eu tinha conhecido no tempo da minha infância. A arquitetur­a, as cores das casas, as ruas e a própria comida, os sabores de pratos que tinha conhecido no Algarve e que a minha avó fazia, encontrei-os do outro lado.” Do mar, entenda-se, esse obstáculo que considerav­a “apenas geográfico” entre os dois países e os dois continente­s.

Sentiu-se sempre mais algarvio do que lisboeta, apesar dos anos vividos na capital portuguesa, mas houve sempre outra cidade na equação – Paris. A capital francesa, na sua juventude e início de idade adulta, era quem ditava as regras culturais na Europa e no mundo. Esteve lá durante um mês, por volta dos 15 anos, quando frequentav­a o atual 9º ano do Liceu Camões. Foi de viagem com Luís Miguel Cintra, colega de turma (consagrado ator e encenador português), e acabou por voltar sempre à Cidade Luz.

O primeiro livro – A Noção de Poema – foi lançado em 1972, um ano especial para Júdice, marcado também pelo seu casamento e nascimento da primeira filha. Acabaria por ter três filhos e cinco netos. Nesse início da década de 1970, estava a terminar o curso de Filologia Românica, na Universida­de de Lisboa, e guardava duas cadeiras para poder adiar a entrada no serviço militar e respetiva ida para a Guerra Colonial em África. Começou a trabalhar na revista Vida Mundial, mas não ficou convencido com o mundo do jornalismo e acabou por dar aulas na Escola Industrial Machado de Castro (de 1992 a 1997), então em Campo de Ourique. Por lá ficou até ao momento em que passou a professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universida­de Nova de Lisboa, de 1997 a 2015, ano em que se aposentou.

“PODÍAMOS SABER UM POUCO MAIS A MORTE. MAS NÃO SERIA ISSO QUE NOS FARIA TER VONTADE DE MORRER MAIS DEPRESSA”

Criação intensa

Com o reconhecim­ento alcançado no primeiro livro, logo vieram outros motivos de orgulho. A década de 70 foi especialme­nte proveitosa, com mais seis livros de poesia, um de ficção e outro de teatro. Nas seguintes, surgiram os ensaios, as antologias e as críticas. No total da carreira, mais de 80 títulos publicados e uma lista extensa de algumas das mais importante­s distinções literárias, como o Prémio de Poesia Pablo Neruda, o Prémio do Pen Club (1985, com Lira de Líquen), o da Associação Portuguesa de Escritores (1995, Meditação Sobre Ruínas), o ibero-americano Rainha Sofia de Espanha, em 2013, e já em 2021, o Grande Prémio de Poesia Maria Amália Vaz de Carvalho, da Associação Portuguesa de Escritores, graças ao livro Regresso a um Cenário Campestre.

Nuno Júdice é um dos poetas portuguese­s mais traduzidos, presente na Europa, nas Américas, em África e na Ásia. Em junho de 1992, o então Presidente da República, Mário Soares, concedeu-lhe o grau de Oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada e, 11 anos depois, foi a vez de Jorge Sampaio elevar a condecoraç­ão para Grande-Oficial da mesma ordem.

Além da escrita e da edição das suas obras, este homem da cultura foi também diretor da revista Colóquio-Letras, da Fundação Calouste Gulbenkian, diretor da revista literária Tabacaria (entre 1996 e 2009), comissário para a Literatura da representa­ção portuguesa na 49ª edição da Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha, e conselheir­o cultural da Embaixada de Portugal em Paris, entre 1997 e 2004. Nesse período assumiu o cargo de diretor do Instituto Camões na capital francesa. Outro momento importante da sua vida, como investigad­or, aconteceu em julho de 2022, quando descobriu um soneto inédito de Luís Vaz de Camões, Cristo Atado à Coluna. O manuscrito de 1666, escrito em português, foi editado no século XVIII e encontrado na Biblioteca Digital Hispânica. Já em março do ano passado, chegou ao grande público o seu último livro, Uma Colheita de Silêncios. Júdice morreu a 17 de março de 2024, no Hospital da Luz, em Lisboa, de doença oncológica.

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