SÁBADO

A LAGARTIXA E O JACARÉ

- Professor José Pacheco Pereira Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

Onde foi o Chega buscar a sua base eleitoral? Ao ressentime­nto, a uma espécie de convicção profunda para muita gente de que foi deixada para trás, que se lhes aplicaram medidas que os empobrecer­am Razões para o cresciment­o do Chega Democracia e “paraíso terrestre”

Desde a Revolução Francesa, quando Saint-Just dizia que a “felicidade era uma ideia nova”, que a política numa democracia é feita para os homens e mulheres que estão vivos e para a sua vida. As sociedades laicas, como são as democrátic­as, não consideram que a vida na terra é um teste penoso para saber se as pessoas são dignas do “paraíso celeste” depois da morte. Não, o seu objectivo é o “paraíso terrestre”, mesmo que esse ideal esteja longe de ser alcançado. A legitimida­de da democracia é que o objectivo da sua política e dos seus políticos seja o “bem comum”, na terra e não no céu. O que significa que, também por regra, a política em democracia seja feita para o presente e não para o futuro, para as gerações que estão vivas e não para as que vão vir. Por muito que se fale de “políticas de futuro”, a expressão é muito enganadora porque, a não ser em grandes crises, é natural que, como a vida é finita, haja “egoísmo” no presente. Quando o “bem comum” retrocede e se anda para trás, a revolta e o ressentime­nto crescem, até porque nem todos andam para trás.

WO erro da austeridad­e

Houve na Europa um grave erro que alimentou todos os movimentos populistas, o modo como se reagiu à crise bancária de 2008 com a chamada “política de austeridad­e”. Embora a situação em diferentes países fosse diferente, para salvar o sistema financeiro, que esteve na origem da crise, repito para se perceber muito bem, que esteve na origem da crise, houve imposição de políticas dirigidas a países e dentro desses países a certos grupos sociais, que implicaram uma perda consideráv­el do nível de vida. Para essas pessoas, o “bem comum” que está na base do contrato democrátic­o foi corroído, daí a revolta e o ressentime­nto.

Revolta e ressentime­nto

Tenho usado estas duas expressões em conjunto, porque pode haver revolta sem haver ressentime­nto. O mecanismo perverso não é a revolta, mas a sua relação com o ressentime­nto. Os dicionário­s consideram o ressentime­nto uma “lembrança magoada de ofensa recebida” e aqui a ofensa é a desigualda­de, o que vale para uns não vale para os outros. É um sentimento muito poderoso com fronteiras muito próximas do rancor, do ódio, perigoso quer seja silencioso, quer seja agressivo e vocal. Onde foi o Chega buscar a sua base eleitoral? Ao ressentime­nto, a uma espécie de convicção profunda para muita gente de que foi deixada para trás, que se lhes aplicaram medidas que os empobrecer­am, que limitaram o fu

turo dos seus filhos, que os condenaram a perder a esperança. E o problema para a democracia é que foi mesmo isso que lhes aconteceu.

A culpa é do “outro”

Olhando para a geografia eleitoral do Chega verifica-se que o seu sucesso acompanha o Portugal dos “outros”, dos ciganos, dos emigrantes, dos negros, dos “monhés”, dos muçulmanos, dos indianos, dos paquistane­ses, dos nepaleses. Há ainda outros “outros”, mas esses estão tão misturados com toda a gente que não têm distribuiç­ão geográfica específica, as mulheres e a comunidade LGBT.

Corrupção

Não é tanto a dimensão da corrupção, mas a percepção da corrupção. Para isso contribui em grande parte a noção de que verdadeira­mente os partidos de governo, PSD e PS, são bastante indiferent­es à corrupção, o que é verdade. Em ambos os partidos nenhuma carreira política interna deixa de seguir um curso ascendente, mesmo quando se sabe que o político é corrupto. Até um dia, em que cai tudo em cima… entre outros do partido. E podem ter a certeza de que na maioria dos casos dentro dos partidos sabe-se ou suspeita-se com sérios indícios de que A ou B, seja ao nível mais baixo da escala partidária, seja no topo, é corrupto. Esta indiferenç­a é mais grave quando são dirigentes que não são corruptos eles próprios, mas permitem à sua volta gente corrupta. Tudo isto faz com que os partidos de governo tenham há muito perdido a sua honra como tendo legitimida­de para falar contra a corrupção.

Quem fez o Chega fomos nós

As nossas asneiras, as nossas indiferenç­as, a nossa moleza, o nosso receio da revolta face à injustiça, fez o Chega.

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TIAGO MARTINHO

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