CADERNO DE SIGNIFICADOS
É no caminho que leva o sistema partidário espanhol que alguns políticos portugueses devem pôr os olhos. Para evitar os mesmos erros. Governar a qualquer preço, por exemplo, de joelhos perante a chantagem de Puigdemont, como faz Sánchez, pode ter um resultado final dramático Ponham os olhos em Espanha
Jásabemos que Espanha tem as suas particularidades. Permanece a ferida profunda de uma guerra civil, de uma memória histórica que uns querem apagar mas outros querem defender. Permanece a fratura entre quem enterrou os seus mortos na guerra e quem foi impedido, até hoje, de cumprir todas as etapas do luto. Também sabemos que tem as suas autonomias, as suas pulsões independentistas, que vão do delírio ariano do fundador do nacionalismo basco, Sabino Arana, até uma Catalunha refém do radicalismo de uns poucos milhares de votos e mandatos.
Espanha tem todos esses problemas de matriz histórica e sociológica, é certo. Mas acrescenta, nas últimas décadas, uma polarização doentia que está a destruir a moderação e o centro político.
É no caminho que leva o sistema partidário espanhol que alguns políticos portugueses devem pôr os olhos, agora que os cenários da governabilidade entram, dramaticamente, em cena. Para evitar os mesmos erros. Governar a qualquer preço, por exemplo, de joelhos perante a chantagem de Puigdemont, como faz Sánchez, pode ter um resultado final dramático para Espanha e para o PSOE.
Nos últimos anos, a política espanhola tribalizou-se ainda mais, através da imposição de uma lógica maniqueísta em torno de questões tão sensíveis como o terrorismo da ETA e a reparação junto das suas vítimas, ou mesmo a integridade territorial do próprio país.
As mentiras do último Governo de Aznar, em cima da tragédia e da emoção dos atentados de Atocha, há 20 anos, e as mentiras dos Governos do PSOE e de Pedro Sánchez, simbolizam dois incendiários que regaram com gasolina os fogos antigos e produziram o crescimento dos extremos.
O espetáculo deprimente da amnistia que o Governo de Sánchez negociou com os independentistas da Catalunha, para viabilizar o seu frágil Governo, agravando a já muito forte politização do poder judicial, está a degradar as instituições, desde logo a própria Constituição.
Por cá, para os que querem fazer uma reforma da justiça em função de dois ou três processos com impacto político, seria bom que estudassem por que razão está o Conselho Geral do Poder Judicial paralisado há mais de cinco anos.
Nas últimas semanas, os poderes de Estado, da justiça à polícia, digladiam-se, como nunca, através dos processos judiciais, servindo espúrios interesses partidários. A máquina tributária, o Ministério Público, juízes de todas as instâncias, a Guardia Civil, têm servido de pasto às guerras entre PSOE e PP. É isto que queremos por cá?
Discute-se se houve terrorismo na farsa violenta que foi o referendo sobre a independência da Catalunha. Aprovou-se uma amnistia em nome da reconciliação nacional que, no entanto, leva todos os ingredientes da divisão e da violação da separação de poderes. É esta relativização da lei que desejamos?
Finalmente, a corrupção instalou-se também no centro do palco, com processos que atingem o coração do PSOE, em torno da compra de máscaras na pandemia, mas também do PP, com Isabel Ayuso na berlinda.
Os dois processos colocam sob suspeita a contratação pública de emergência. Ganharam em toda a linha, muitíssimos milhões, facilitadores instalados em qualquer círculo de poder público. Elementar, previsível, trágico.
A investigação da rede criada por Koldo Garcia, um ex-porteiro de discoteca que chegou a assessor do poderoso José Luís Ábalos, ex-ministro e ex-dono do aparelho do PSOE, é antológica. O homem faturou milhões, sem saber ler nem escrever, num processo em que até faturas de serviços de prostituição, digamos assim, existem. Trata-se, afinal, de papéis mal-amanhados para justificar gastos artificiais. É este pântano que queremos, vitaminando ainda mais o Chega?! Ou queremos uma investigação criminal séria, sem medo nem tabus, que ataque a corrupção, venha ela de onde vier?
Com uma esquerda a caminho da irrelevância, um centro inabitado desde o falhanço do Ciudadanos, uma extrema-direita já presente em dezenas de municípios e autonomias, o sistema constitucional espanhol assenta numa rotatividade entre PP e PSOE que está a ser, também ela, pulverizada. Sim, porque o PSOE vai sair de rastos do atual ciclo político. É isto que também queremos? Não me parece. Ponham os olhos em Espanha, por favor.