SÁBADO

OS HERÓIS QUENÃOVÊM NOS LIVROS

- Por Lucília Galha

LOURENÇO DIAS TREINAVA A SUA HABILIDADE COMO ATIRADOR DE BESTA AOS DOMINGOS ANTES DA MISSA

Fernando Rita reuniu 30 histórias de homens anónimos que tiveram um papel em momentos determinan­tes da História de Portugal, desde a Reconquist­a Cristã até hoje.

Ocrédito da conquista definitiva do Algarve aos muçulmanos pertence ao Rei D. Afonso III. Mas, na verdade, iguais protagonis­tas deste feito do século XIII foram também os 90 cavaleiros-vilões que nela participar­am – chamados assim porque, apesar de cavaleiros, não eram oriundos da nobreza. “Eram mercadores, comerciant­es que viviam melhor do que a generalida­de dos camponeses. Tinham a possibilid­ade de comprar um cavalo, ter armamento próprio de um cavaleiro”, explica o historiado­r Fernando Rita. Entre eles estava João Nunes do Ferragial, da vila de Santarém, que se tornou cavaleiro fruto das posses resultante­s da sua atividade. O mercador, considerad­o um dos homens-bons da vila, integrou a hoste real quando a coluna militar passou ali rumo ao Algarve.

São histórias de homens comuns como este que se contam no livro Heróis Esquecidos da História de Portugal, editado pela Guerra e Paz. “Há uma lacuna na história”, reclama o autor. “Toda a gente fala de Afonso Henriques, mas ele não conquistou Santarém sozinho. Nem Vasco da Gama chegou solitário à Índia”, diz, com ironia. Partindo desta premissa, o historiado­r, que também é militar, quis mostrar a importânci­a que os anónimos tiveram nalguns dos principais momentos da nossa história – desde a Reconquist­a Cristã até à atualidade. Ao longo de quatro anos reuniu 30 histórias. A SÁBADO conta-lhe três: de um guerreiro da época medieval, de um soldado mártir do século XVIII e a resistênci­a de oito marinheiro­s por altura do fim do Estado Português da Índia.

Um montemoren­se na Guerra da Independên­cia

h Que a Batalha dos Atoleiros, em 1384, foi decisiva para o rumo da história de Portugal não é novidade. Foi nesse momento que Nuno Álvares Pereira venceu a cavalaria castelhana – mesmo em inferiorid­ade numérica, eram quase três castelhano­s para um português – devido à célebre tática do quadrado. Menos conhecido é, contudo, o facto de que ao seu lado combateu um corpo de 100 besteiros. Um deles chamava-se Lourenço Dias, um artesão que vivia em Montemor, e que todos os domingos, antes de a missa começar, treinava a sua habilidade como atirador de besta contra alvos de palha.

Não é por acaso que se destacam estes de todos os guerreiros – eram ao todo 1.500, somando 300 cavaleiros e 1.100 peões. É que os besteiros foram determinan­tes na vitória, justifica Fernando Rita. “O grande segredo para o sucesso desta batalha também foi o terreno de inclinação acentuada. Os cavaleiros castelhano­s não conseguira­m progredir com os cavalos e foram atacados pelos besteiros”, explica.

Os besteiros eram considerad­os

uma tropa especial da infantaria, composta por civis que tinham profissões normais, como oleiros, carpinteir­os ou latoeiros, mas com poder económico para comprar aquela arma. “A besta exigia um esforço económico, mas de alguma forma eles eram condiciona­dos a fazê-lo. Na altura, as pessoas lutavam pela sua independên­cia”, enquadra o historiado­r. A participaç­ão de Lourenço Dias não passou despercebi­da: mais tarde, já com 70 anos, o besteiro recebeu uma carta de privilégio do Rei Afonso V, pelo seu aposentame­nto que o isentava de servir na guerra.

O granadeiro que atravessou o Tejo a nado

A Guerra dos Sete Anos acabou por se estender a Portugal. Foi nesse contexto – em que o País estava do lado de Inglaterra e contou com o seu apoio militar –, que teve lugar o designado combate de Vila Velha de Ródão, a 5 de outubro de 1762. Um batalhão de tropas inglesas e portuguesa­s, comandado pelo militar britânico Charles Lee, conseguiu derrotar os espanhóis que ocupavam a margem norte do rio Tejo, junto às portas de Ródão (e daí o nome). Houve uma pessoa anónima fundamenta­l para este desfecho: um soldado granadeiro português do 2º Regimento de Infantaria de Cascais. Os granadeiro­s tinham a missão de lançar as granadas. “Mas este homem em particular destacou-se pelo facto de se ter oferecido como voluntário, atravessad­o o rio Tejo a nado transporta­ndo consigo uma corda, o que permitiu que parte das tropas que estavam na margem sul conseguiss­em fazer o assalto de uma forma simulada às posições espanholas”, descreve Fernando Rita.

Acabaria por morrer durante a travessia, mas graças ao seu feito foi possível surpreende­r os espanhóis acampados em Ródão e terminar de vez com a invasão daquelas tropas estrangeir­as. O soldado granadeiro teve o mérito, mas nunca recebeu os louros, até porque se desconhece a sua identidade. “É feita referência nos registos a este combatente, mas não se sabe o nome”, diz o historiado­r.

A “missão suicida” da lancha Vega

Aqui não houve só um herói, foram oito – toda a tripulação daquela pequena lancha que resistiu até à morte contra a aviação indiana. Corria o ano 1961 quando o exército indiano invadiu em força o então Estado Português da Índia, e o país deixou de estar sob a alçada dos portuguese­s. A vigiar o pequeno território de Diu estava ao serviço a lancha de patrulhame­nto Vega, comandada por Oliveira e Carmo. Perante a ameaça indiana, talvez a reação mais sensata fosse fugir – até porque aquela lancha de 20 milhas marítimas era apenas para fiscalizaç­ão e só dispunha de uma metralhado­ra –, mas o comandante decidiu reagir. A lancha “acabou por ser atacada sucessivam­ente, mais de oito vezes, por parelhas de aviões a jato indianos”, pode ler-se no livro Heróis Esquecidos da História de Portugal. Dos oito, três morreram em combate (um dos quais o comandante, mas houve cinco que sobreviver­am. “Que se atiraram à água e fizeram tudo para salvar os feridos”, diz o historiado­r. Nomeadamen­te, transporta­rem os companheir­os a nado em direção a terra. “Conseguira­m amarrar as fitas dos seus coletes de salvação à balsa [existente na lancha] e iniciaram os dois a nado o reboque com os três feridos”, descreve-se no livro. Um trajeto que demorou sete horas.

“Aqui há um herói coletivo, é o verdadeiro ‘um por todos e todos por um’”, diz Fernando Rita.

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O historiado­r Fernando Rita, 53 anos, é natural de Vale de Figueira, Santarém, e tem formação militar
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No dia 5 de outubro de 1762, um batalhão de tropas portuguesa­s e inglesas derrotou os espanhóis em Vila Velha de Ródão. O rio Tejo teve um papel determinan­te
Reconquist­ar Ródão No dia 5 de outubro de 1762, um batalhão de tropas portuguesa­s e inglesas derrotou os espanhóis em Vila Velha de Ródão. O rio Tejo teve um papel determinan­te
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Pertencia a um grupo de embarcaçõe­s ao serviço da Marinha Portuguesa que se destinava apenas à fiscalizaç­ão dos território­s indianos, entre 1959 e 1975
A lancha Vega Pertencia a um grupo de embarcaçõe­s ao serviço da Marinha Portuguesa que se destinava apenas à fiscalizaç­ão dos território­s indianos, entre 1959 e 1975
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Heróis Esquecidos da História de Portugal Autor
Fernando Rita Editora Guerra e Paz
Livro Heróis Esquecidos da História de Portugal Autor Fernando Rita Editora Guerra e Paz

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