SÁBADO

As janelas que contam histórias

- Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

SEMPRE QUE VEJO uma pessoa debruçada à janela, há uma história que está a ser contada. Alguém que decidiu olhar para fora do casulo e espreitar o que estava para além daquela moldura de vidro. Todos os dias passo por uma senhora de 80 anos que está à janela, e todos os dias a encontro de cotovelos pousados, com o mesmo ar de farol curioso, a rodar a cabeça e a afinar os olhos para tudo o que vai mexendo. Uma pessoa à janela não vê só o que está à frente dela; às vezes desembesta para sítios tão longínquos que só por sorte é que consegue voltar. As pessoas mais velhas debruçadas à janela são o património de uma rua – espreitam outras vidas, desvendam intrigas, descobrem coisas bonitas, procuram quem entra e sai do prédio, quem está doente e quem acabou de nascer; fazem a patrulha da rua sem pedirem nada em troca.

São capitães de navios de vários andares. Ficam a ver o dia a passar, cheias de inveja por já não terem para onde ir, mas com ternura pelos que avançam cheios de pressa para o que ainda têm pela frente. Resistiram a ficar no sofá, cansaram-se de ficar só a ver televisão porque perceberam que ali ao menos ainda as olham de volta. À frente da televisão são invisíveis – os olhos que olham para elas, são olhos que não as vêem. À janela vestem fardas e são funcionári­as delas próprias. Organizam turnos, sabem qual a melhor hora para voltar ao posto, e qual a hora em que podem voltar para dentro e recolher para onde está mais escuro e quieto. As janelas são promessas rectangula­res de esperança. Crianças que desenham palavras no vidro embaciado, animais que espreitam ansiosos pelo regresso de quem os passeia, vizinhos que cumpriment­am quem passa, pessoas que esperam sabe-se lá o quê, sabe-se lá quando.

Do lado de fora há tanta coisa para onde olhar, tanta vida, que a solidão de quem está lá dentro fica mais acompanhad­a.

No queixo da janela a roupa acabada de lavar, estendida por baixo do parapeito, presa pelos ombros com molas, a deixar-se embalar pelo vento até ficar seca, numa dança entre lençóis e camisolas que só se encontram naquele cordão. Por cima dessa dança, os cotovelos apoiados de quem continua à espreita. A palavra parapeito é bonita porque já se deixa preparada para o que aí vem. É feita para que o peito se debruce e fique a bater encostado à pedra fria. A janela foi a primeira televisão do mundo, ainda antes de se saber que ela estava para ser inventada. As cabeças vão para muito longe, quando se olha por uma janela. Fica o corpo parado, mas por dentro a viagem vai longa. Quando se abre apressam-se os ares da estação do ano por ali dentro. Depois abre-se mais uma na outra ponta da casa, e atravessa uma corrente inteira de ar a trocar a respiração cansada que estava fechada dentro daquelas paredes, por um bafejo cheio de vida nova. Uma casa com janelas e portadas fechadas

A janela foi a primeira televisão do mundo, ainda antes de se saber que ela estava para ser inventada. As cabeças vão para muito longe, quando se olha por uma janela

guarda segredos sombrios. Fica triste e de olhos fechados, à espera do dia em que lhe devolvam a luz.

Nas janelas dos carros, as crianças no banco de trás a olhar para fora e a serem super-heróis que voam e resolvem problemas de adultos. Os pais à frente, de olhar distante, a já não serem crianças, a fazerem contas de gente crescida. A paisagem a passar tão depressa que fica só um borrão de cores, com o céu sempre parado, como se tivesse uma velocidade só dele. Quando a chuva bate nas janelas, as luzes todas se derretem nas gotas que escorrem pelo vidro, as casas deformadas, os outros carros parecem ter formas que não existem. Há um ditado que diz que “quando se fecha uma porta, abre-se uma janela”, mas não é um ditado justo com o que representa cada uma dessas coisas. Uma porta circunscre­ve uma acção de entrar ou sair, um gesto que se completa no momento em que se usa; uma janela é um rasgão na parede que desvenda pequenas amostras do que se passa no resto do dia. É luz que entra para desenhar sombras que se mexem ao longo das horas, uma forma geométrica que atravessa a parede para manter ligado o que está dentro e fora. À noite, nas janelas dos prédios, famílias a fecharem o dia. As cozinhas com alguém à volta de um forno, as salas com as estantes cheias de histórias que só podemos imaginar, candeeiros pendurados, a luz da televisão a disparar cores contra a parede. Corpos a passarem de umas janelas para as outras, vultos a cumprirem a rotina coreografa­da. Pequenos retângulos de luz que se acendem e apagam, a desenharem prédios desdentado­s. Lá dentro estão pessoas deitadas na cama, com aquele golpe na parede que lhes leva até ao colo as estrelas e a luz da Lua. E debruçada à janela está uma história por contar.

Uma casa com janelas e portadas fechadas guarda segredos sombrios. Fica triste e de olhos fechados

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JUAN CAVIA

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