SÁBADO

OS PAIS QUE SÃO FILHOS

- ÂNGELA MARQUES

Por ser membro de um clube secreto que já vive no futuro, ele não trabalha uma única sexta-feira do ano, presencial ou remotament­e. Assim, entre a aula de pilates e a tarde de surf com que ele planeara ocupar o dia enquanto eu, alheia a tudo (quase extraterre­stre), envelhecia sentada à secretária, o meu amigo queria almoçar e pôr o sumário das nossas vidas em dia.

Contente por poder temperar aquele final de semana com um gostinho de fim de semana (trocando uma marmita sem história por um caril de frango tailandês carregado de picante e um lassi de manga), disse-lhe que sim, reservei mesa para dois para a hora certa e saí do trabalho debaixo de chuva mas com o ânimo nos píncaros. O óbvio aconteceu: eu cheguei cedo, ele chegou ensopado.

Depois do abraço que a ocasião pedia, pedimos a carta, despachámo­s o protocolo (“então o que é que vai ser?”, “e para beber?”) e demos a primeira colherada nos temas que havia a tratar naquela assembleia: o mundo, o medo, o fascismo, o feminismo, o coração, a canseira e o exercício, que sacrifício.

Com uma guerra à escala global no horizonte, uma corrida desenfread­a à Bitcoin e a

DEPOIS DO ABRAÇO QUE A OCASIÃO PEDIA, PEDIMOS A CARTA, DESPACHÁMO­S O PROTOCOLO E DEMOS UMA COLHERADA NA CONVERSA

ressaca das eleições legislativ­as ainda a dar-nos dor de cabeça, discutimos quais eram os países onde nos imaginaría­mos, de futuro, a viver, com que dinheiro e com que vontade. Resumindo para não nos baralharmo­s: deitámos conversa fora na esperança de, com isto, não deitarmos toda a esperança a perder.

Quando passámos à sobremesa ainda íamos no início da conversa (é sempre assim quando falamos com amor). Havia uma preocupaçã­o no ar dele – e teríamos de falar sobre ela ou nem poderíamos continuar a tratar-nos como amigos. Insisti até que confessass­e que a preocupaçã­o nem era original: estava a deixar de ser filho para se transforma­r em pais dos próprios pais. E como isso lhe parecia um copo meio vazio, ofereci-lhe um copo meio cheio: “Pelo menos não tens outros filhos.”

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