OS PAIS QUE SÃO FILHOS
Por ser membro de um clube secreto que já vive no futuro, ele não trabalha uma única sexta-feira do ano, presencial ou remotamente. Assim, entre a aula de pilates e a tarde de surf com que ele planeara ocupar o dia enquanto eu, alheia a tudo (quase extraterrestre), envelhecia sentada à secretária, o meu amigo queria almoçar e pôr o sumário das nossas vidas em dia.
Contente por poder temperar aquele final de semana com um gostinho de fim de semana (trocando uma marmita sem história por um caril de frango tailandês carregado de picante e um lassi de manga), disse-lhe que sim, reservei mesa para dois para a hora certa e saí do trabalho debaixo de chuva mas com o ânimo nos píncaros. O óbvio aconteceu: eu cheguei cedo, ele chegou ensopado.
Depois do abraço que a ocasião pedia, pedimos a carta, despachámos o protocolo (“então o que é que vai ser?”, “e para beber?”) e demos a primeira colherada nos temas que havia a tratar naquela assembleia: o mundo, o medo, o fascismo, o feminismo, o coração, a canseira e o exercício, que sacrifício.
Com uma guerra à escala global no horizonte, uma corrida desenfreada à Bitcoin e a
DEPOIS DO ABRAÇO QUE A OCASIÃO PEDIA, PEDIMOS A CARTA, DESPACHÁMOS O PROTOCOLO E DEMOS UMA COLHERADA NA CONVERSA
ressaca das eleições legislativas ainda a dar-nos dor de cabeça, discutimos quais eram os países onde nos imaginaríamos, de futuro, a viver, com que dinheiro e com que vontade. Resumindo para não nos baralharmos: deitámos conversa fora na esperança de, com isto, não deitarmos toda a esperança a perder.
Quando passámos à sobremesa ainda íamos no início da conversa (é sempre assim quando falamos com amor). Havia uma preocupação no ar dele – e teríamos de falar sobre ela ou nem poderíamos continuar a tratar-nos como amigos. Insisti até que confessasse que a preocupação nem era original: estava a deixar de ser filho para se transformar em pais dos próprios pais. E como isso lhe parecia um copo meio vazio, ofereci-lhe um copo meio cheio: “Pelo menos não tens outros filhos.”