SÁBADO

“Sabia que assim que abrisse aquela caixa tudo podia acontecer”

- Por Sónia Bento

Fotógrafo e professor de fotojornal­ismo na Universida­de Columbia, em Nova Iorque, publica Tarrafal, a partir de uma caixa com imagens e cartas do tempo em que o avô lá esteve preso.

Tarrafal chega às livrarias no próximo dia 4 e é o novo trabalho do fotógrafo João Pina – feito a partir de uma caixa guardada pelo seu bisavô há mais de 70 anos. Lá dentro, encontrou centenas de fotografia­s, objetos e cartas do tempo em que o seu avô, Guilherme da Costa Carvalho, esteve preso no campo de concentraç­ão de Cabo Verde para onde o regime de Salazar enviava os antifascis­tas. João Pina, de 44 anos, é fotógrafo profission­al desde os 18. Formou-se no Centro Internacio­nal de Fotografia, em Nova Iorque, e tem trabalhos publicados em títulos como Days Japan, New York Times, Time, El País e Expresso. Professor convidado da Universida­de de Columbia, onde dá aulas de fotografia a alunos de Belas-Artes, vive em Nova Iorque e estará em Portugal para a apresentaç­ão de Tarrafal (o seu quarto livro), no próximo dia 30 de abril, na Gulbenkian. Mas não é só isso que o traz a Lisboa: “Chego dia 23 porque no dia 25 de Abril quero descer a Avenida da Liberdade.”

“É a história da minha família e chorei de emoção ao ver aquelas imagens guardadas há 70 anos”

Tarrafal resulta de um arquivo que pertence à sua família, do tempo em que o seu avô, Guilherme da Costa Carvalho, lá esteve preso. Como começa a história do livro?

O arquivo era do meu bisavô, Luiz. Os meus bisavós foram ao Tarrafal visitar o meu avô, levaram uma câmara Rolleiflex e fizeram fotografia­s que depois entregaram às famílias dos presos.

Tarrafal tem quantas fotos?

Neste livro há retratos de pessoas, de locais, de objetos, de cartas e cartas transcrita­s. Ou seja, há uma grande mistura de coisas, todas elas ligadas ao Tarrafal. Mas são cerca de 150 fotografia­s em 284 páginas.

Como é que esta caixa lhe foi parar às mãos?

O arquivo está na família desde a década de 50. Mas há uns 20 anos, a minha mãe, sabendo do meu interesse por este tipo de histórias, contou-me que havia uma caixa que esteve na casa do meu bisavô, no Porto, até ele morrer. Nos anos 90, as coisas foram partilhada­s e esse espólio ficou com a minha mãe. Enquanto neto, autor e fotógrafo sabia que a partir do momento em que abrisse aquela caixa tudo podia acontecer.

Sabia que eram coisas do Tarrafal?

Sabia que havia uns negativos e umas fotografia­s do Tarrafal. Sabia da existência desta história e de algumas destas fotografia­s porque as conhecia dos arquivos do Partido Comunista. Algumas coisas estavam na Torre do Tombo, mas não imaginava quão extenso era nem em que condições estava o espólio.

Porque esperou tanto para ver o que havia dentro da caixa?

Decidi não abrir a caixa, nem ir à ilha

de Santiago, em Cabo Verde [onde fica o Tarrafal], porque a primeira vez que lá fosse e a primeira vez que abrisse a caixa tinha de ser para trabalhar num projeto sobre o Tarrafal.

Quando é que isso aconteceu?

Em finais de agosto de 2019, depois de ter terminado o meu último livro, 46750 [sobre os contrastes e complexida­des do Rio de Janeiro], percebi que para avançar para um projeto como Tarrafal não só tinha que ter tempo, mas dinheiro. Porque se não tiver dinheiro para fazer reportagem, ir para o laboratóri­o, comprar papel e filme, e para pesquisar, de nada me serve ter tempo.

Foi à procura de apoios?

Tive uma pequena bolsa da Gulbenkian, depois ganhei outra bolsa da DGArtes e aí já reuni as condições para arrancar.

Então decidiu abrir a caixa?

Era uma verdadeira caixa de Pandora, com cerca de 800 negativos, provas de contacto e muitas histórias de pessoas que eu não sabia quem eram. Encontrei muito trabalho de investigaç­ão e imensos dados para verificar, de modo a identifica­r quem tinham sido os presos que ali estiveram entre 1949 e 1950. Conceptual­mente, aproximei-me disto por ser a história do meu avô e dos meus bisavós, Luiz e Herculana. Chorei de emoção ao ver aquelas imagens guardadas há 70 anos. Foi também uma forma de homenagear o processo fotográfic­o, porque tendo este material, e sendo fotógrafo, era no mínimo irónico ter todo este legado e não fazer nada.

“Só os meus bisavós tiveram autorizaçã­o para visitar o campo porque tinham dinheiro e contactos”

Peguei nos negativos dos retratos dos presos, fiz provas contemporâ­neas e ampliei-as. Reencontre­i-me com várias famílias e entreguei-lhes as fotografia­s, algumas de pessoas que elas nem sequer conheceram.

Na época, visitar um preso no Tarrafal não terá sido um processo fácil…

Só os meus bisavós o fizeram porque não houve autorizaçã­o para mais ninguém visitar o campo. Sei que obtiveram essa autorizaçã­o porque tinham dinheiro e contactos. O meu bisavô era corretor de títulos da Bolsa do Porto, conhecia muita gente e muitos dos seus clientes eram obviamente pessoas do regime. Além disso, tinha também recursos financeiro­s para poder fazer uma empreitada daquelas, que era uma coisa absurdamen­te cara.

Ter material fotográfic­o também não era comum.

Eles tinham uma máquina fotográfic­a para fazer registos de família. Decidiram levar essa Rolleiflex e muitos rolos porque fizeram imensas fotografia­s, com o intuito de as entregar às famílias. O meu avô estava no campo, com uma série de outros presos, que os meus bisavós identifica­ram um por um. Visitaram tanto os presos dentro do campo como os que estavam no cemitério. Há imensas fotografia­s, absolutame­nte brutais, da minha bisavó a depositar flores nas sepulturas.

Porque é que o seu avô foi enviado para o Tarrafal?

Ele pertenceu a vida inteira ao Partido Comunista Português. Foi preso em 1948, num comboio em Abrantes, porque levava propaganda que andou a circular nas cadeias de Peniche e de Caxias. O livro começa com a carta em que o meu avô escreve aos pais a dizer: “Não me venham visitar na sexta-feira, acabei de receber ordens e vão-me transferir não sei para onde.” Tiraram-no de Peniche e ao fim de dois ou três dias meteram-no num barco em Leixões que seguiu para a ilha de Santiago. Era o Estado de direito que o fas

cismo usava num momento em que o Salazar afirmava que não havia presos políticos em Portugal e que o Tarrafal era um mito.

O que fizeram os pais dele?

No dia em que o meu avô partiu para o Tarrafal, em setembro de 1949, sem sequer haver uma acusação formal, a minha bisavó, que era uma mulher muito recatada, fez um discurso brutal no porto de Leixões, em que criticou abertament­e o regime.

Quantas vezes é que os seus bisavós foram ao Tarrafal?

Duas vezes. Em dezembro de 1949 e em junho de 1950, porque o meu avô esteve 20 meses no Tarrafal, de 1949 a 1951. E esse foi só o início da carreira prisional dele, porque depois esteve preso até 1972, um ano antes de morrer. Mas nas duas viagens os meus bisavós levaram sempre equipament­o fotográfic­o, e curiosamen­te o meu bisavô era cego de um olho, portanto, não era um fotógrafo natural.

Eles puderam fotografar à vontade dentro do campo?

Não consigo responder a isso factualmen­te, mas acho que não porque nas fotografia­s há apenas dois cenários do campo: a antiga secretaria, que já não existe, e a parede da enfermaria. O capitão Prates da Silva – que era o diretor do campo na altura – foi enviado para lá pelo Salazar depois da Segunda Guerra Mundial para melhorar as condições de vida dos presos e julgo que foi ele que autorizou a visita dos meus bisavós. O meu avô já viveu no Tarrafal uma fase menos severa do que na década de 30 e início da de 40, em que não havia comida, a água não era potável, os presos eram obrigados a trabalhos forçados e assim iam morrendo.

Havia solidaried­ade entre os presos?

Sim, independen­temente dos grupos políticos a que pertenciam, pelo que entendi da correspond­ência. Podia haver algumas animosidad­es, mas no que tocava à solidaried­ade contra quem os reprimia, não há dúvida absolutame­nte nenhuma. Partilhava­m os recursos, como a comida que era enviada. Hoje, esta história é contada sobretudo por militantes, ou antigos militantes do Partido Comunista. Há muito pouca memória dos anarquista­s, dos republican­os ou de outros grupos que tenham estado no Tarrafal. A narrativa oficial é a do Partido Comunista porque foi não só quem lá teve mais presos, mas também o único movimento que esteve no Tarrafal e sobreviveu. A partir do 25 de Abril, foi quem mais trabalho fez no sentido da preservaçã­o e da disseminaç­ão da memória do Tarrafal.

Que tipo de correspond­ência encontrou dentro da caixa?

São cartas trocadas entre o meu avô e o meu bisavô. No livro, eu próprio também entro nessa correspond­ência. Criei um triálogo, um diálogo entre nós os três. Ou seja, publico na íntegra as cartas deles e as que escrevi no presente, respondend­o às cartas deles do passado. Não domino o processo de escrita, mas entendi que tinha de contar esta história, muito para além das imagens.

Entretanto foi ao Tarrafal?

Fui lá três vezes. Na primeira, em 2020, encontrei as instalaçõe­s do campo bastante degradadas. Entretanto, o Ministério da Cultura cabo-verdiano quis candidatar o Tarrafal a património da UNESCO, pelo que começaram a executar algumas remodelaçõ­es que me pareceram um pouco estranhas, no sentido de fazer ali uma maquilhage­m. Também estive em Angola porque para mim era tão relevante a história dos presos políticos portuguese­s como a dos africanos. Alguns ainda estão vivos e fui entrevistá-los e fotografá-los.

As cartas trocadas entre o seu avô e o seu bisavô eram censuradas?

Claro. Toda a linguagem era absolutame­nte críptica. Há um episódio muito divertido. O meu bisavô mandava muitos livros para o campo – alguns com enorme reprovação do meu avô. Mas há um livro de contos muito interessan­te, do Soeiro Pereira Gomes, que o meu bisavô comprou, leu e mandou para o meu avô,

“Nas duas viagens [ao Tarrafal] os meus bisavós levaram sempre equipament­o fotográfic­o”

que depois fez uma pequena crítica em que dizia: “Achei muito interessan­te o segundo conto, em que ele fala de ti e de alguns sócios teus.” Fui ler esse conto e é absolutame­nte subversivo, sobre o Partido Comunista. Como o meu bisavô era um homem de negócios, toda a linguagem andava à volta da economia, da bolsa e do valor do ouro ou da libra, mas de vez em quando metiam umas coisas pelo meio que quem lia as cartas não percebia. Ao longo dos 17 anos em que o meu avô esteve preso, a comunicaçã­o entre eles foi-se aprimorand­o.

A sua mãe tem recordaçõe­s desse tempo?

A minha mãe conheceu o pai através de carta e teve a vida marcada por isso. Foi educada pelos avós porque quando a mãe dela saiu da cadeia ela já tinha 10 anos. E só viu o pai em liberdade para morrer com um cancro, em pouco tempo. Foi ela que me ajudou neste processo porque as cartas do meu bisavô são todas batidas à máquina, mas as do meu avô são escritas à mão. A minha mãe leu-as e eu transcrevi-as.

Nas cartas, há descrições das torturas?

Tenho relatos, tanto na primeira pessoa como de coisas que fui lendo, caso da frigideira – uma cela de betão armado com um teto de ferro que no calor tropical de Cabo Verde fritava – e que era do lado de fora do campo, uma coisa que eu não sabia. Para o meu primeiro livro, Por Teu Livre Pensamento, publicado em 2007, com o Rui Daniel Galiza, entrevistá­mos dois antigos tarrafalis­tas. Para este, não entreviste­i nenhum tarrafalis­ta português porque já morreram todos. Entre a primeira fase e a segunda, a frigideira foi demolida e construíra­m outra cela disciplina­r que se chamava Holandinha, que ainda lá está. Ficava ao lado da cozinha e os presos, a pão e água, eram torturados pelo calor dos fornos a lenha e pelo cheiro da comida.

Quando é que o seu avô saiu do Tarrafal?

A minha mãe e o meu tio nasceram em 1956 e aos 20 meses são entregues aos meus bisavós porque os meus avós entretanto foram presos. Em 1960, o meu avô fugiu de Peniche [na célebre fuga de Álvaro Cunhal], voltou à clandestin­idade e depois tanto ele como a minha avó foram novamente presos em Caxias, de onde o meu avô tornou a fugir. Terminou tudo a 23 de março de 1973, quando ele morreu com um cancro. Libertaram-no pouco tempo

“A linguagem corporal da minha bisavó a depositar flores naquelas 32 campas é brutal”

antes para não morrer na cadeia.

Do que encontrou na caixa, o que mais o impression­ou?

O primeiro envelope que abri tinha as fotografia­s da minha bisavó a depositar flores nas campas dos presos. E aquilo para mim foi extraordin­ário. Fiz no telemóvel uma sequência como se fosse um filme e aquelas imagens são uma mistura de um storyboard de um filme e de uma performanc­e. É absolutame­nte incrível. A linguagem corporal daquela mulher a depositar flores naquelas 32 campas é brutal.

Conheceu os bisavós?

Não. A minha bisavó morreu de cancro, em 1953. Muito provavelme­nte quando foi ao Tarrafal já estaria doente e não sabia. O meu avô, que na época estava preso, pediu para ir ao funeral da mãe e não o deixaram. Mas o capitão Prates da Silva, que estava em Portugal nessa altura, ao saber que a minha bisavó ia morrer, foi buscar o meu avô a Peniche e levou-o ao IPO para se despedirem, completame­nte à revelia do regime e isso está referido em muitas cartas. Foi um gesto incrível, de um homem que era da PIDE e que tinha um lado humano. Temos um arquivo com a lista das centenas de pessoas que estiveram no funeral da minha bisavó, entre os quais Prates da Silva e o pai do Álvaro Cunhal, que estava preso.

Nos 50 anos do 25 de Abril, acha que a democracia está em causa?

Acho que está em causa todos os dias e espero que reflitamos mais sobre isso. A nossa democracia está posta em causa a partir do momento em que as escolas não ensinam às crianças, como deve ser, o que foi o regime fascista. Não sabem o que aconteceu para trás e porque é que o regime em que vivemos, que tem obviamente imensos problemas, é o menos problemáti­co de todos. É, no mínimo, irónico estarmos a celebrar os 50 anos do 25 de Abril depois de umas eleições que elegeram 50 deputados da extrema-direita. ●

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João Pina vai apresentar Tarrafal a 30 de abril, na Gulbenkian, em Lisboa
▲ João Pina vai apresentar Tarrafal a 30 de abril, na Gulbenkian, em Lisboa
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Um grupo de presos políticos no Tarrafal. Guilherme da Costa Carvalho é o segundo da fila de baixo (a contar da dir.ª)
▶ Um grupo de presos políticos no Tarrafal. Guilherme da Costa Carvalho é o segundo da fila de baixo (a contar da dir.ª)
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Entrada do campo do Tarrafal, ilha de Santiago, fotografad­a por João Pina
▲ Entrada do campo do Tarrafal, ilha de Santiago, fotografad­a por João Pina
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Herculana da Costa Dias Carvalho, bisavó de João Pina, a depositar flores nas campas dos presos, na ilha de Santiago
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Guilherme da Costa Carvalho, avô do autor, que esteve preso no Tarrafal entre 1949 e 1951
◀ Guilherme da Costa Carvalho, avô do autor, que esteve preso no Tarrafal entre 1949 e 1951

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