Santos Silva e o antifascismo dominante
A saída de Santos Silva do parlamento desatou alguma da miopia corrente sobre as formas mais eficazes de combater a ascensão do Chega e de ideias muito perigosas para a democracia. Santos Silva começou bem o mandato ao desmarcar-se do rubor antifascista indignado de Ferro Rodrigues, manifestamente protagonista de um estilo arcaico, primário, e nada eficaz para travar o partido de André Ventura. Aos primeiros embates, porém, borrou a pintura toda, caindo, primeiro, numa atitude condescendente, depois enfileirando, com todo o cinismo político que sempre o caracterizou, nas patéticas trincheiras do antifascismo reinante. Santos Silva não foi mais do que um verdadeiro bonzo da retórica anti-Chega.
Santos Silva transformou-se, muito depressa, na face de tudo o que de pior pode ter a luta contra o Chega, navegando nas conveniências da dupla moral, dupla verdade e dupla contabilidade. Há o caminho dos iluminados pelos valores democráticos e que se agregam nas estruturas de poder cartelizadas por pequenos sindicatos do voto militante, que indicam as candidaturas autárquicas e de deputados, e depois há os outros, inorgânicos, capturados pelos desígnios perversos do populismo, do antissistema, por aí adiante. Um maniqueísmo insuportável para quem insista em pensar pela sua cabeça, entre os partidos puros e os outros. Entre os eleitores puros e os outros. Entre os portugueses puros e os outros.
O discurso de Santos Silva é uma pastorícia política que convoca os cidadãos para um rebanho acéfalo. Escamoteia todos os problemas dos chamados partidos tradicionais, despreza os eleitores que votaram no Chega, deploráveis excluídos de qualquer contexto democrático, simboliza e sintetiza todos os problemas dos partidos dominantes nestes 50 anos decorridos depois do 25 de Abril de 1974. Com muitos Santos Silvas no poder, não duvidem, a democracia não precisa dos seus inimigos clássicos, na extrema-direita e na extrema-esquerda. Eles estão incrustados no dito poder e nas suas instituições.
Se há coisa boa que estas eleições legislativas de 10 de março trouxeram foi recuperar Santos Silva para uma santa reforma e afastá-lo do bulício da vida política. Que tenha muita saúde para gozar a bela reforma que o espera, agora que a derrota no círculo fora da Europa matou também a sua famosa candidatura presidencial.
Se querem combater o Chega trabalhem, deixem-se de retórica antifascista como a dos Santos Silvas que por aí anda. Podem começar por algumas mudanças simples. Pegando num dos muitos exemplos da atualidade mediática destes dias, o da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e os seus infinitos escândalos, fiquem com uma ideia: deixem de colonizar as instituições, de as tratar como albergues da rapaziada dos aparelhos do PS, PSD e CDS.
A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa é um bom exemplo do que os chamados partidos tradicionais não devem fazer. Enxamearam a coisa de boys, arranjaram todo o tipo de esquemas com fornecedores, concessões e adjudicações, meteram-se numa aventura milionária com a chamada ‘internacionalização’ do jogo para o Brasil, fazendo voar dos cofres da instituição para cima de €50 milhões. Como é possível que aconteça uma coisa destas, numa instituição que há décadas é repartida por PS, PSD e CDS, e ninguém vai preso!? Como é possível que nenhuma tutela tenha verdadeiramente funcionado ou, pelo menos, o tenha feito de forma escandalosamente tímida? Acham que os eleitores não reparam nestas coisas? Acham que é possível assobiar para o lado e seguir em frente, deixando os interesses canibalizarem-se nas catacumbas do poder? Que é possível continuar a enganar o pagode com doses massivas de indignação anti-Chega e que tudo seguirá como habitualmente? Com o domínio dos negócios e a habitual impunidade. Perigosa ilusão! ●