SÁBADO

Dois terrorismo­s

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Éimpossíve­l não lembrar que a palavra terror, no sentido político, designou em França, a partir de 1793, um sistema de intimidaçã­o exemplar sobre os adversário­s, reais ou supostos, do novo poder. Por outras palavras, o primeiro terrorismo foi do Estado, como lembrou Edmund Burke.

Quando ouvimos falar do luto que caiu sobre Moscovo, temos de separar, mesmo que para muitos seja difícil, Governo e sociedade. O primeiro, ao tentar exterminar a Ucrânia, lançou o luto generaliza­do, desde 2014, e sobretudo a partir de 2022. Já a segunda, que agrega muitos combatente­s forçados, prisioneir­os políticos, manifestan­tes, panfletári­os, oradores exemplares, resistente­s, vítimas e famílias das vítimas da invasão, está realmente de luto.

As forças especiais de polícia só chegaram ao recinto 40 minutos depois de os atacantes fugirem. Ou seja, o estado terrorista do Kremlin fez pouco, ou nada, para proteger os seus cidadãos da fúria sanguinole­nta de um terrorismo contra o Estado. Terrorismo que também se declara “estado”, e injuria os crentes ao dizer-se, por blasfémia, “islâmico”. Os civis assassinad­os no Crocus City Hall foram assim “danos colaterais” na luta entre duas formas de monstruosi­dade. A primeira destrói cidades à distância, numa fúria cega, alegadamen­te guiada pela tecnologia da guerra total. A segunda evita alvos militares, exala cobardia e compraz-se no degolar de inocentes de todas as idades.

A campanha lançada por Putin e pelo seu círculo de propaganda, acusando a Ucrânia do malefício, foi uma monstruosi­dade adicional. Ainda

em curso, e com possíveis exacerbame­ntos. Ao censurar asperament­e os alertas de segurança dos EUA, transmitid­os, de forma discreta, pela CIA ao SVR do senhor Naryshkin, Putin mentia sobre algo de que tinha plena consciênci­a: a Rússia estava amplamente infiltrada por células do Daesh. A primeira foi destruída em Karabulak, na Inguchétia, depois de um tiroteio de 12 horas. Tinha-se constituíd­o em torno de Amirkhan Gurazhev, e integrava seis militantes fortemente armados, todos mortos. A segunda foi descoberta e eliminada em Kaluga, a sul de Moscovo, no mesmo dia em que Washington decidiu tornar público o alerta lançado ao Kremlin.

Quando os EUA foram apanhados em contrapé, no 11 de Setembro, e quando Israel despertou para os massacres de Outubro, houve também várias divergênci­as entre serviços de informaçõe­s, alertas ignorados e incompetên­cia, ou descuido, de profission­ais de segurança. Mas americanos e israelitas assumiram rapidament­e a autoria dos atos: não culparam nem a China, nem o Irão, nem a Rússia, nem a Coreia do Norte. Os nomes Al-Qaeda e Hamas tornaram-se rapidament­e presença em todas as declaraçõe­s oficiais. E levaram às operações de supressão e retaliação conhecidas.

Quando se deu o massacre da estação de Madrid, há 20 anos, o Governo espanhol em funções teve primeiro a tentação de ver a mão da ETA, e de a culpar. A ilusão durou poucas horas, e rapidament­e se descobriu a pista jihadista. No caso russo, não só foram ignorados ou acusados de falsidade todos os comunicado­s do Daesh, a reivindica­r o terror, apesar de terem surgido na sequência normal dos atos do grupo, como se manteve a versão convenient­e da “pista ucraniana”.

No momento em que estamos, a difamação ainda não chegou ao auge, porque os serviços secretos de todo o mundo possuem já provas suficiente­s da real autoria. Seria embaraçoso aparecer um neutral, alguém fora do “Ocidente coletivo”, ou mesmo um aliado, a desmentir o trono de sangue de Moscovo. Mas nas declaraçõe­s dos implicados poderão sempre ser forçadas confissões sobre Kiev. O processo penal russo, como se sabe, não é notório pelas suas garantias e independên­cia das magistratu­ras. Começa-se pelo princípio: ao serem apanhados em Bryansk, Putin referiu imediatame­nte que fugiam para a Ucrânia, esquecendo-se de dizer que a fronteira da Bielorrúss­ia fica ainda mais perto. ●

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