A LAGARTIXA E O JACARÉ
A guerra da Ucrânia e a política agressiva da Rússia de Putin, assim como o bloqueio republicano ao apoio americano, mudaram tudo. A Europa sente-se em risco, o desleixo e a passividade dos últimos anos estão a mudar
Às vezes vale a pena começar uma discussão
Não sei se aqui ou no Público, já há algum tempo e a propósito da situação que a Europa vai ter de defrontar pela eventual coligação de Putin com Trump, com a Ucrânia como principal vítima e a Europa como a vítima seguinte, falei da necessidade de se discutir a questão do serviço militar obrigatório quando o assunto era tabu. A questão parecia esquecida, mas fez o seu caminho, suportada por uma sondagem e pelo crescente debate na comunicação social e nos meios militares, agravada pela consciência dos riscos de uma guerra europeia. O grau de inconsciência ou cobardia dos políticos durante a campanha eleitoral fez com que esta e outras questões ligadas à defesa e à guerra e à paz na Europa fossem iludidas. ●
Serviço militar obrigatório
O serviço militar obrigatório não é um anacronismo como alguns agora dizem. É um elemento estrutural da democracia, a obrigação dos jovens em idade de irem para a tropa, de participarem nos riscos da defesa do seu país, do seu modo de vida, da democracia e da liberdade.
A ideia é genética da própria democracia, desde a democracia antiga, em que quem participava na decisão de guerra e paz, partia muitas vezes do Pnyx ateniense para a guerra, e ganhou uma dimensão moderna com a “levée en masse” da revolução francesa, que foi fundamental para a salvação do regime republicano. Em França, o serviço militar obrigatório teve imensas resistências, mas junto com a escola obrigatória “fez” a França como nós a conhecemos, que não existia, nem do ponto de vista linguístico, antes do século XIX.
Em Portugal, o fim do serviço militar obrigatório foi resultado de uma pressão das “jotas” partidárias, e fragilizou as forças armadas e o ethos da sua função cívica igualitária e democrática. A profissionalização que daí resultou implicou custos consideráveis, que a deslegitimação das forças armadas nunca obteve nos valores necessários nos orçamentos. Como em quase toda a Europa, viveu-se à sombra dos EUA, o que implicou não só uma menorização das forças armadas nacionais, como uma perda de margem de manobra soberana no quadro da OTAN. Pouco a pouco foi-se acentuando a ideia de que as forças armadas serviam apenas para missões internacionais de paz, em que os efectivos, treino e armamento, eram compatíveis com a pobreza dos orçamentos nacionais. Com o fim da guerra fria, acentuou-se a ideia de que forças armadas convencionais se tinham tornado inúteis e, com excepção de algumas missões no Atlântico, tudo o resto foi-se tornando obsoleto.
A guerra da Ucrânia e a política agressiva da Rússia de Putin, assim como o bloqueio republicano ao apoio americano, subordinado a um candidato presidencial estranhamente próximo de Putin, mudaram tudo. A Europa sente-se em risco, o desleixo e a passividade dos últimos anos estão a mudar. Para Portugal há idêntico sentimento de que temos que reinvestir nas forças armadas e
dar-lhe o suporte de homens e mulheres que só o serviço militar obrigatório pode dar. ●
desastre moral do Ocidente
O desastre moral do chamado Ocidente chama-se Gaza. A violência do massacre original do Hamas tornava legítima a resposta militar de Israel. Até aí muito bem, se o alvo fosse selectivo, cuidadoso e, com os recursos e a experiência de Israel, eficaz. Mas isso implicava que Israel se comportasse com a responsabilidade que vem de ser uma democracia, logo ligada aos direitos humanos e ao direito internacional, que implica que a guerra não pode ser feita para além dos seus objectivos militares e políticos próprios. E para isso era preciso um outro primeiro-ministro que não seja Bibi, e outro governo que não fosse arrogante na superioridade rácica e que não tratasse os palestinos como carne para canhão.
Eu sei que o Hamas usa os civis e que, em muitos casos, a distinção entre civis e militantes radicais de grupos como o Hamas, é impossível de fazer. Haveria sem dúvida aquilo a que eufemisticamente se chama “danos colaterais”. Mas o que aconteceu e acontece está muito para além dos danos colaterais, é uma guerra contra todos os que vivem na faixa de Gaza, com violação de todas as leis da guerra aceites pelas democracias e por muitas ditaduras, com todas as violências contra mulheres crianças, velhos, hospitais, campos de refugiados, jornalistas, membros de organizações de solidariedade internacional contra a fome, as doenças, os feridos não tratados, os mortos indiscriminados. Foi assim desde o primeiro dia e continua assim.
E o Ocidente que de imediato aplicou sanções à Rússia, e bem, aqui não faz nada. Para nós é um desastre moral, para Israel é um beco sem saída cujos custos em termos de reputação e segurança vão muito para além da perigosidade do Hamas. ●