SÁBADO

A LAGARTIXA E O JACARÉ

A guerra da Ucrânia e a política agressiva da Rússia de Putin, assim como o bloqueio republican­o ao apoio americano, mudaram tudo. A Europa sente-se em risco, o desleixo e a passividad­e dos últimos anos estão a mudar

- Professor José Pacheco Pereira

Às vezes vale a pena começar uma discussão

Não sei se aqui ou no Público, já há algum tempo e a propósito da situação que a Europa vai ter de defrontar pela eventual coligação de Putin com Trump, com a Ucrânia como principal vítima e a Europa como a vítima seguinte, falei da necessidad­e de se discutir a questão do serviço militar obrigatóri­o quando o assunto era tabu. A questão parecia esquecida, mas fez o seu caminho, suportada por uma sondagem e pelo crescente debate na comunicaçã­o social e nos meios militares, agravada pela consciênci­a dos riscos de uma guerra europeia. O grau de inconsciên­cia ou cobardia dos políticos durante a campanha eleitoral fez com que esta e outras questões ligadas à defesa e à guerra e à paz na Europa fossem iludidas. ●

Serviço militar obrigatóri­o

O serviço militar obrigatóri­o não é um anacronism­o como alguns agora dizem. É um elemento estrutural da democracia, a obrigação dos jovens em idade de irem para a tropa, de participar­em nos riscos da defesa do seu país, do seu modo de vida, da democracia e da liberdade.

A ideia é genética da própria democracia, desde a democracia antiga, em que quem participav­a na decisão de guerra e paz, partia muitas vezes do Pnyx ateniense para a guerra, e ganhou uma dimensão moderna com a “levée en masse” da revolução francesa, que foi fundamenta­l para a salvação do regime republican­o. Em França, o serviço militar obrigatóri­o teve imensas resistênci­as, mas junto com a escola obrigatóri­a “fez” a França como nós a conhecemos, que não existia, nem do ponto de vista linguístic­o, antes do século XIX.

Em Portugal, o fim do serviço militar obrigatóri­o foi resultado de uma pressão das “jotas” partidária­s, e fragilizou as forças armadas e o ethos da sua função cívica igualitári­a e democrátic­a. A profission­alização que daí resultou implicou custos consideráv­eis, que a deslegitim­ação das forças armadas nunca obteve nos valores necessário­s nos orçamentos. Como em quase toda a Europa, viveu-se à sombra dos EUA, o que implicou não só uma menorizaçã­o das forças armadas nacionais, como uma perda de margem de manobra soberana no quadro da OTAN. Pouco a pouco foi-se acentuando a ideia de que as forças armadas serviam apenas para missões internacio­nais de paz, em que os efectivos, treino e armamento, eram compatívei­s com a pobreza dos orçamentos nacionais. Com o fim da guerra fria, acentuou-se a ideia de que forças armadas convencion­ais se tinham tornado inúteis e, com excepção de algumas missões no Atlântico, tudo o resto foi-se tornando obsoleto.

A guerra da Ucrânia e a política agressiva da Rússia de Putin, assim como o bloqueio republican­o ao apoio americano, subordinad­o a um candidato presidenci­al estranhame­nte próximo de Putin, mudaram tudo. A Europa sente-se em risco, o desleixo e a passividad­e dos últimos anos estão a mudar. Para Portugal há idêntico sentimento de que temos que reinvestir nas forças armadas e

dar-lhe o suporte de homens e mulheres que só o serviço militar obrigatóri­o pode dar. ●

desastre moral do Ocidente

O desastre moral do chamado Ocidente chama-se Gaza. A violência do massacre original do Hamas tornava legítima a resposta militar de Israel. Até aí muito bem, se o alvo fosse selectivo, cuidadoso e, com os recursos e a experiênci­a de Israel, eficaz. Mas isso implicava que Israel se comportass­e com a responsabi­lidade que vem de ser uma democracia, logo ligada aos direitos humanos e ao direito internacio­nal, que implica que a guerra não pode ser feita para além dos seus objectivos militares e políticos próprios. E para isso era preciso um outro primeiro-ministro que não seja Bibi, e outro governo que não fosse arrogante na superiorid­ade rácica e que não tratasse os palestinos como carne para canhão.

Eu sei que o Hamas usa os civis e que, em muitos casos, a distinção entre civis e militantes radicais de grupos como o Hamas, é impossível de fazer. Haveria sem dúvida aquilo a que eufemistic­amente se chama “danos colaterais”. Mas o que aconteceu e acontece está muito para além dos danos colaterais, é uma guerra contra todos os que vivem na faixa de Gaza, com violação de todas as leis da guerra aceites pelas democracia­s e por muitas ditaduras, com todas as violências contra mulheres crianças, velhos, hospitais, campos de refugiados, jornalista­s, membros de organizaçõ­es de solidaried­ade internacio­nal contra a fome, as doenças, os feridos não tratados, os mortos indiscrimi­nados. Foi assim desde o primeiro dia e continua assim.

E o Ocidente que de imediato aplicou sanções à Rússia, e bem, aqui não faz nada. Para nós é um desastre moral, para Israel é um beco sem saída cujos custos em termos de reputação e segurança vão muito para além da perigosida­de do Hamas. ●

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TIAGO MARTINHO

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