NO PAÍS EMERSO
Em São Paulo, o fenómeno da crise da habitação não é igual ao que se sente nas principais cidades europeias – e que afeta com maior intensidade Lisboa e Porto –, mas a pertinência de algumas soluções que lá encontraram é inegável
O (bom) exemplo da Ocupação 9 de Julho, em São Paulo
DE VIAGEM em São Paulo, passei a Páscoa a passear numa cidade que tem a dimensão de Portugal de acordo com várias métricas. Em 2020, a cidade de São Paulo (não confundir com o homónimo estado federal) contava com cerca de 12,3 milhões de habitantes, enquanto Portugal contaonta hoje com 10,4 milhões.
Além disso, de acordo comm o Cen-Censo Demográfico de 2022 divulgadodivulgado pelo Instituto Brasileiro dee Geogra-Geografia e Estatística (IBGE), Sãoão Paulo tem cerca de 590 mil imó-veis particulares vazios, va-lor quase 20 vezes maior doo que o número de indivíduosos em situação de sem-abrigo. Já Portugal tem cerca de 730 mil casas vazias, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), relativos a 2021, e de acordo com o Inquérito de Caracterização das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo para o ano de 2022, foram sinalizadas 10.773 pessoas em si-tuação de sem-abrigo, numauma desproporção maior face aos números de São Paulo, com mais casas vazias, mas menosenos pes-pessoas em situação de rua.
Em São Paulo, a crise da habitaçãohabitação é vivida sobretudo pelas pessoas mais pobres e com menores rendimentos. O fenómeno não é igual ao que se sente nas principais cidades europeias – e que afeta com maior intensidade Lisboa e Porto –, mas a pertinência de algumas soluções que lá encontraram é inegável e por isso decidi escrever sobre o bom exemplo da Ocupação 9 de Julho, que visitei no domingo.
A Ocupação 9 de Julho é um prédio ocupado pelo MSTC – Movimento dos Sem Teto do Centro, em São Paulo. O movimento tem como objetivo garantir o direito fundamental à habitação e contribuir para uma reforma política e social que democratize o direito à cidade. Desde 2017 que na Ocupação 9 de Julho se desenvolve o projeto de cozinha coletiva, cujo objetivo é suprir as necessidades do MSTC em relação à alimentação durante as suas atividades e promover, através de almoços abertos, uma maior visibilidade à luta por habitação digna.
Atualmente, os almoços incluem uma programação com espetáculos, oficinas e ações de formação e serviços, oferecendo incentivo e apoio às atividades dos moradores, a maioria trabalhadores informais e de baixos rendimentos, além de remuneração através do trabalho na própria cozinha. Outros núcleos de atividade incluem a Galeria Reocupa (com exposições de arte contemporânea), a Oficina de Arte (voltada para adultos e crianças semanalmente), o CineOcupa (com a projeção de produções audiovisuais) e a Horta da Ocupação (com a compostagem de resíduos orgânicos e o plantio de insumos).
Quando visitei, almocei maravilhosamente por cerca de 7 euros, bebi um sumo de maracujá delicioso, comprei uma T-shirt e visitei a galeria de arte. O trabalho que lá se desenvolve é fascinante e mostra a força que o terceiro setor pode ter na inclusão e justiça social, em paralelo com a ação do Estado. Em Portugal, faz-nos muita falta um terceiro setor vivo, ativo e produtivo.
O trabalho desenvolvido na Ocupação 9 de Julho gerou um extenso e multidisciplinar conjunto de trabalhos de académicos, reportagens, literatura e filmografia, produzidos por universidades, escritores, cineastas e pela própria imprensa, quer nacional quer internacional. Diversos prémios e reconhecimentos foram recebidos em nome do movimento, através de sua líder, Carmen da Silva Ferreira. A Ocupação 9 de Julho nnão resolveu os problemas de habitaçãohabita da cidade de São Paulo, masma melhorou inequivocamenteme a vida de centenas de pessoaspe e deu-nos um valiosolio contributo acerca do mérito destas soluções, que podem ser aplicadas noutras cidades.
Há exatamente um ano, o Governo português anunciava que tinha identificadotifica perto de 11 mil imóveis devolutos do Estado. Uma vez que as políticas de habitação pública tardam a fazer efeito, seria muito interessante se uma associação ou fundação se disponibilizasseponi para ocupar um desses imóveis, garantindo as condições para a habitação digna e segura para quem precisa dela – sejam cidadãos em situaçãoção de sem-seabrigo, com habitação indigna ou com um custo desproporcionalcional face aos seus rendimentos. ●