Ventura e a cartilha da vítima
A cartilha da vítima sempre foi um instrumento poderoso. Ser vítima tem enormes vantagens: dá prestígio social, promove e fomenta reconhecimento. É um potente gerador de direitos e de autoestima, imuniza contra críticas, transforma a vítima num concentrado de reivindicação, pretensão, desejo de ter o poder ou de condicionar o seu detentor.
O assunto é muito estudado pelos italianos. Filósofos, sociólogos, politólogos, nomes que vão de Pasquino, Giglioli a Furio Jesi, este recentemente publicado pela VS Editores, convergem em muitas ideias que se sintetizam em fórmulas simples nos cenários políticos marcados pela polarização e pela fragmentação do poder.
Os italianos têm um laboratório político fenomenal, que atravessa todo o século XX. Os políticos dos “velhos partidos”, como a Democracia Cristã, o PSI ou o próprio PCI foram os primeiros, depois da II Guerra Mundial, a saber que a melhor máquina de produção mitológica, digamos assim, na linguagem jesiana, tem na mão os palcos, os bastidores, os cenários do poder.
Naquele tempo, os mitos eram produzidos para as análises de imprensa, e correspondiam a realidades objetivas das fraturas políticas que marcavam o panorama da política internacional. Hoje seriam meias-verdades, ou mentiras mesmo, para o jogo das redes sociais. Por isso passaram, com a Guerra Fria em pano de fundo, a vitimizar-se uns contra os outros. A Democracia Cristã contra o papão dos comunistas, Berlinguer contra o perigo fascista, o PSI a servir de muleta da governabilidade, abrindo caminho para engordar as elites corruptas de todos os partidos que governaram Itália ao longo de 50 anos.
No essencial, todos eles sabiam que a ideologia da vítima é o grande disfarce dos mais fortes. Ela gera a irresponsabilidade, não responde perante nada nem ninguém, não tem necessidade de se justificar, abre caminho para lideranças. É o sonho de qualquer poder, seja ele democrata ou oriundo do populismo mais básico.
Quem viu o arranque da atual legislatura naquele episódio burlesco que foi a eleição do presidente da Assembleia da República, assistiu a um espetáculo inequívoco de afirmação da ideologia da vitimização.
André Ventura conduziu o espetáculo sabendo que o frágil teatro de sombras do novo parlamento o favorecia. Emergiu como um destes heróis do nosso tempo, especialistas em transformar a vitimização numa qualidade quase identitária, colada à pele. Normalizado por mais de 1 milhão de votos, esbarrava numa elite parlamentar que insistia em ignorá-lo, em tratá-lo como um pária. Agora vingou-se, mas começou, também, a perder algum do seu poder de fogo contra o sistema.
Ventura brilhou para uma parte do seu eleitorado durante um dia e até terá ganho o que não tinha até aí, um vice-presidente do parlamento. Também um administrador para gerir as arcas de um dos pilares institucionais da República. Mas, como se viu no discurso final, Ventura perdeu uma das principais armas da sua retórica de combate. O chefe do Chega qualificou o acordo entre PS e AD para uma presidência rotativa do parlamento como uma distribuição de “tachos”, quando ele próprio, mesmo sem o tal “acordo” ou “entendimento” a que chegara com Luís Montenegro, o que mostra querer é estar na partilha dos ditos tachos.
Se um acordo entre dois partidos para desbloquear o impasse é um tacho, então o que será a ocupação de uma vice-presidência e de um lugar de administrador pelo seu partido!? Nem uma coisa nem outra são tachos. Apenas o são na retórica do Chega. Mas, na lógica deste palavreado, o Chega sentou-se à mesa do orçamento a comer do mesmo tacho. Normalizou-se. Levou um rombo na retórica de ataque e de vitimização. A AD e o PS não ganharam apenas na solução, fazendo um acordo tardio que deveriam ter feito no início da sessão. O Chega, como se viu, quer poder, mesmo que sejam sobras. E isso, para lá de desgastar, vai acabando com a vitimização. Daqui em diante, de cada vez que Ventura falar de tachos alguém lhe deve lembrar os tachistas que vai tendo no sistema que tanto critica. ●