SÁBADO

Não é para isto que lhes pagam

- Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

PODE-SE TIRAR as medidas a uma pessoa sem que ela desconfie. É um exercício que nos acontece, não é algo que tenhamos de forçar muito a atenção para conseguir. Às vezes aprendemos mais sobre alguém quando estamos a vê-la em silêncio, do que quando estamos a ouvi-la falar. Quando se fala consegue-se manobrar a personalid­ade, porque conseguimo­s ajustar o discurso a quem nos ouve. Dizemos o que queremos que seja ouvido, sorrimos consoante o que o momento pede, tornamos grave a cara quando sentimos que é apropriado, e escapamos de nós próprios por um triz. Em silêncio há olhares e gestos que fazemos sem nos darmos conta, e que nos traem sem que saibamos que estamos a fazer parte dessa traição. São pequenas subtilezas que se infiltram e que deixam uma marca discreta mas de contornos grossos. Ainda assim, há momentos em que tudo o que treinámos serve de pouco, e aquilo que somos se sobrepõe à máscara que se confundia com a nossa cara.

Serve isto para dizer que há dois tipos de pessoas no mundo: as que tratam bem os empregados de mesa, e as pequeninas. É muito fácil distinguir as duas, porque uma trata quem as atende como pessoas iguais, e a outra trata quem as atende de cima para baixo, como se fizessem parte de uma elite. Acontece que essa elite muitas vezes só se distingue do resto do mundo porque pediu um café. E a fraqueza de espírito faz com que sintam que aqueles 70 cêntimos que estão a pagar dão direito a um trono, um ceptro e uma coroa, e a partir daí não esperam menos dos seus súbditos do que subserviên­cia e lealdade incondicio­nal. Quando vemos alguém tratar mal um empregado de mesa, temos acesso a quase tudo o que precisamos de saber sobre essa pessoa: ela pode ser boa mãe, bom filho, ser bem-sucedida no emprego, mas nada disso a conseguiu livrar da mesquinhez que desvenda uma atitude como essa. A palavra “servir” não ajuda os fracos de educação, porque se aproveitam dela e transforma­m-na num trunfo para reinar. Sentem que se estão a ser servidos, é porque alguma coisa fizeram para o merecer; logo, acham que chegou o tempo de fazerem-se valer desse poder. Que não basta serem servidos, têm de lhes escovar o pêlo e beijar os pés. Acontece que um empregado de mesa é um cliente que por acaso está a trabalhar. O que separa quem está sentado no café de quem está a servir num café, é um avental. Tudo o resto são escadas hierárquic­as que quem é frágil precisa para se fazer notar. O que leva a uma atitude dessas nunca se resume a “um dia mau”. Ser assim é coisa que já lá está entranhada há muito tempo – foi burilando ao longo dos anos, e revela traços de personalid­ade que podem até estar escondidos, mas é uma questão de tempo até se fazerem notar. Os sítios onde volto sempre são feitos de empregados de mesa que têm a generosida­de de fazer do sítio onde trabalham a casa

Um empregado de mesa tem de lidar com vários temperamen­tos ao longo de um dia de trabalho, vários humores, impaciênci­as, desgostos de amor, desejos de vingança, alegrias e tristezas

onde nos recebem. Estão só de passagem, não são donos do sítio onde estão a trabalhar, mas querem que durante o tempo em que estamos lá, nos sintamos convidados deles. A generosida­de de receber bem é uma qualidade que não está ao alcance de todos os que por ela passam, e há quem não saiba aceitar essa generosida­de sem que lhe suba à cabeça. Um empregado de mesa tem de lidar com vários temperamen­tos ao longo de um dia de trabalho, vários humores, impaciênci­as, desgostos de amor, desejos de vingança, alegrias e tristezas. Ouvem o que não são pagos para ouvir, recebem muito pouco em troca, e pedem-lhes que sejam sempre atenciosos e simpáticos com quem atendem. Por outro lado, ao cliente pede-se muito pouco: que seja respeitado­r para quem lá trabalha, e que pague aquilo que consome. Não é física quântica, nem engenharia aeroespaci­al, para justificar que haja tantos que só conseguem cumprir uma destas duas coisas. Tratar mal quem nos está a servir é um exercício de pequeno poder de alguém que não tem outra forma de ser ouvido. Qualquer pessoa que precise de pedir um prato de ervilhas com ovos escalfados para sentir que lhe estão a obedecer, é uma pessoa que nunca vai perceber que não é por respeito a ela que o estão a fazer, mas apenas porque estão a pagar um prato de ervilhas com ovos escalfados num sítio que os vende. O respeito só chega se o cliente também o tiver para troca, não é coisa que se compre nem se exija. Um empregado de mesa devia receber o dobro por cada hora que o tratam mal, e esse dobro devia ser saldado por quem o destratou. O resto é troco. Não é para isso que lhes pagam. ●

Há dois tipos de pessoas no mundo: as que tratam bem os empregados de mesa, e as pequeninas

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JUAN CAVIA

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