SÁBADO

AS PALAVRAS DEBAIXO DA LÍNGUA

- ÂNGELA MARQUES

esquerda nesse refogado, a busca por uma palavra parecia simples como um domingo.

“Pirolito?”, perguntei, só para ter graça. Era riu-se mas seguiu na demanda: “Uma coisa que é poeirenta.” Achei vago e ela deve ter sentido o mesmo porque continuou: “Uma coisa datada.” Pensei que estávamos a afunilar e gostei. “Bas fond”, escreveu, como quem baixa os braços. E se até àquele momento eu só pensava em palavras que pudessem emprestar um tom pejorativo à intenção da minha amiga, quando li “bas fond” pensei num dos nossos bares preferidos.

Provavelme­nte porque já imaginava isso, ela acrescento­u

“AMIGA”, DESESPERAV­A ELA PELO TELEMÓVEL. “TENHO AQUI UMA PALAVRA DEBAIXO DA LÍNGUA DE QUE NÃO ME CONSIGO LEMBRAR”

“mas num mau sentido” que me atirou para o início da minha pesquisa mental. Até que ela, com o tamanho de letra de quem grita, escreveu “já sei”. Não tive de esperar 20 segundos: “Bafiento. Era ‘bafiento’ a palavra que eu queria.” Ainda confusa do jet lag (porque até este momento, embora possa não parecer, tinham passado no máximo um minuto e 40 segundos, o que significa que o meu dia não tinha evoluído sobejament­e), escrevi-lhe: “Adorei ajudar.”

De resposta, obtive gratidão por nada: “E ajudaste!” A tentar tirar sentido daquilo, elaborei um “às vezes só precisamos de uma pessoa com quem pensar alto”. Ela, generosa, concordou: “Mesmo. É que andei aqui às voltas, até perguntei ao Chat GPT.” E foi aí que ela me atingiu onde só os amigos conseguem: no ciúme tolo, disparatad­o e gratuito. “É a prova de que o Chat GPT não é nosso amigo.” Ela: “Nada, nem quis saber.” Claro, concluiu: “É que eu já estava aqui em ânsias para te ajudar.” ●

 ?? ??
 ?? ??
 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal