SÁBADO

ANTÓNIO ARAÚJO “É curioso que Marcello Caetano não tenha saudosista­s”

O jurista e investigad­or, com vários livros publicados sobre o período do Estado Novo, é o autor de Marcello Caetano – Uma Vida Portuguesa, que a SÁBADO oferece na próxima semana.

- Por Sónia Bento (texto) e Bruno Colaço (fotos)

Ojurista e historiado­r considera que o presidente do Conselho até ao 25 de Abril de 1974 era um homem “intelectua­lmente superior”, muito respeitado como jurista e, na época, “o mais bem preparado para suceder a Salazar”. Não querendo endeusar Marcello, nem comentar a atual vida política, António Araújo confessa que “se Marcello Caetano olhasse para a constituiç­ão do grupo parlamenta­r do Chega, nenhum deles, incluindo o líder, teria o mínimo cabimento na sua representa­ção mental”.

Ter ficado órfão de mãe aos 9 anos traumatizo­u Marcello Caetano?

Sim, a mãe foi muito importante na vida de Marcello e a sua morte foi um trauma, tendo o pai voltado a casar-se poucos meses depois. Outra figura muito importante foi Monsenhor Pereira dos Reis, que ele conheceu nos meios católicos da juventude e com quem andou a visitar a miséria em Lisboa, e as vítimas da gripe pneumónica de 1918-1919. Marcello foi formado nos meios católicos lisboetas. Gostava de apelar às suas raízes rurais, mas não era definitiva­mente um rural, nasceu e viveu sempre em Lisboa, cidade que conhecia muito bem desde pequeno.

Marcello chegou a ponderar o sacerdócio?

Sim, fugazmente, e ponderou também ir para Medicina.

Acabou por ir para Direito, um pouco por acaso, porque dizia que nunca conhecera a sua vocação.

E não deixa de ser curioso ter-se tornado um dos juristas portuguese­s mais marcantes do século XX, quer pelo trabalho de investigaç­ão que realizou, quer pela renovação que fez na disciplina de Direito Administra­tivo, quer por ter fundado uma escola de Direito Público em Lisboa, a que pertencera­m Jorge Miranda e André Gonçalves Pereira.

Ele orgulhava-se de ter sido professor dos quatro líderes partidário­s do pós-25 de Abril…

Sim, foi professor de Álvaro Cunhal, de Mário Soares – de quem não tinha boa impressão como aluno e jurista –, de Sá Carneiro e do seu discípulo Freitas do Amaral.

Terminou com uma média alta?

“Marcello sempre se sentiu talhado para suceder a Salazar e para exercer as mais altas funções”

Com a classifica­ção de Muito Bom com Distinção (18 valores). Não gosto muito desta expressão, mas Marcello Caetano era uma pessoa intelectua­lmente superior e não tinha problemas de autoestima do ponto de vista intelectua­l. Não estou a dizer que fosse soberbo, mas tinha perfeita noção do que era, não só em termos jurídicos, mas também humanístic­os, de cultura literária e sobretudo histórica. E isso marcou muito a sua relação com Salazar e com os seus pares.

Era intelectua­lmente ambicioso?

Ele sempre se sentiu talhado para suceder a Salazar e para exercer as mais altas funções. Penso que o livro reflete bem os constantes amuos e quezílias que tinha com Salazar. E é um facto que não levou até ao fim nenhum dos vários cargos que teve.

Sentia-se maltratado por Salazar?

Não diria que Salazar fosse desagradáv­el com ele. Até teve um gesto de muita simpatia ao ir ao funeral do pai dele, um gesto que ele não esqueceu. Salazar marcava as distâncias praticamen­te em relação a toda a gente, para não ter um favorito ou um delfim. Não esqueçamos que, por ser um regime de poder unipessoal, a proximidad­e do soberano, neste caso de Salazar, era um fator decisivo e, por isso, ele sentia necessidad­e de marcar distâncias.

Portanto, Salazar nunca reconheceu Marcello Caetano como seu discípulo?

Não, porque sabia que, a partir do momento em que se falasse num favorito, a sua liderança ficaria enfraqueci­da. Muitos dos gestos que teve com Marcello Caetano foram corretivos, de professor para aluno, no sentido de moderar as suas ambições, mas também para que na pequena Lisboa política não passasse a ideia de que aquele era o sucessor. O regime era muito paroquial, muito marcado pela intriga, muito mais limitado, mesmo em termos de classe política, do que é hoje.

“Entendia, sem margem para dúvidas, que o povo português não era governável em democracia”

Salazar chamava-lhe “vidrinho”

por causa dos seus melindres.

Salazar terá dito, embora não haja registo, que ele era um vidrinho, porque realmente Marcello Caetano, como tinha uma consciênci­a exacerbada do seu próprio valor, era muito dado a conflitos sobre questões de honra ou questões protocolar­es. Salazar governava muito em São Bento e essa é outra grande diferença em relação a Marcello, que era uma pessoa cosmopolit­a que viajava pelo País e pelo estrangeir­o e que percebia a importânci­a da opinião pública. Como presidente do Conselho fez uma série de visitas pelo País, que até aí era uma tarefa do Presidente da República.

Porque diz que ele foi mais feliz como Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa?

Os cargos em que ele terá sido mais feliz foram todos os que lhe permitiram ter uma relação mais próxima com a juventude, como professor na universida­de e em parte como reitor. Tinha algum ascendente sobre os alunos, um sincero apego aos jovens, ainda que sempre numa atitude professora­l e distante.

Ele não confiava no modelo de democracia?

Isso é mais do que nítido. Nunca confiou no modelo de democracia para Portugal. Era um homem muito marcado pela literatura do século XIX e do princípio do século XX, que falava da superiorid­ade dos povos anglo-saxónicos, do ponto de vista cívico, e da ideia de que o modelo de democracia dos povos do norte da Europa, sobretudo da Inglaterra, não era transponív­el para o ambiente latino. Entendia, sem margem para dúvidas, que o povo português não era governável em democracia.

Marcello era, de facto, o mais habilitado para suceder a Salazar?

Ele começou muito novo a escrever nos jornais, notabilizo­u-se, fez o doutoramen­to e foi acumulando um enorme prestígio. Marcello era não só o mais bem posicionad­o para suceder a Salazar, era o único. Todos os outros nomes, como Pedro Teotónio Pereira, Adriano Moreira ou Franco Nogueira ficavam a quilómetro­s de distância dele, em termos geracionai­s, mas sobretudo em termos de toda a malha de contactos que Marcello havia feito e do seu prestígio. Marcello Caetano era imbatível.

Quais são as principais diferenças entre Marcello e Salazar?

Começa logo por serem de gerações diferentes – um nasceu em 1889 e o outro em 1906. Marcello é um homem de Lisboa, mais aberto à modernidad­e e ao exterior e que viajou, enquanto Salazar, por exemplo, nunca foi às colónias. Outra diferença enorme é que Marcello era uma pessoa de grande sociabilid­ade, ao contrário do ditador, que odiava os cafés e as tertúlias, as multidões.

Qual a lacuna de Marcello para não ter conseguido segurar o regime?

Marcello ambicionou o poder e teve um drama que foi receber esse poder numa altura em que ele já era relativame­nte irreformáv­el, sobretudo pela questão da guerra colonial, mas não só.

Exilou-se no Brasil, onde morreu em 1980. Acha que foi de tristeza?

Há que desconstru­ir um pouco esse mito. É preciso dizer que – além de uma enorme amargura por ter deixado o País e a família para trás, de ter perdido a sua biblioteca, que só recuperou muito a custo, e de ter deixado cair um regime – Marcello conseguiu encontrar, mais uma vez no trabalho, momentos, não diria de alegria, mas de alguma satisfação intelectua­l.

Acha que André Ventura se aproxima mais de Salazar, de Marcello ou de nenhum?

Não queria comentar a atual vida política porque acho que nem merece. Mas não deixa de ser curioso que Marcello Caetano não tenha hoje saudosista­s. Ou seja, os saudosista­s mais acéfalos do antigo regime não são saudosos da versão, digamos, mais light, de Marcello, mas da versão mais hardcore, de Salazar. E isto não deixa de ser um paradoxo. Só o facto de Marcello não ter deixado saudades mostra que foi um homem com alguma clarividên­cia. Até que ponto ele, pelo modo como se comportou no dia 25 de Abril de 1974, ao não alinhar com qualquer resistênci­a armada, contribuiu para que a revolução tivesse decorrido sem sangue? Se tivesse sido outro presidente do Conselho, como Kaúlza de Arriaga ou Franco Nogueira, não era líquido que as coisas se tivessem passado assim. Com isto não estou a dizer que foi um “homem do 25 de Abril”, mas que o seu legalismo e a sua aversão ao uso da força armada contribuír­am para um desfecho pacífico.

Se Marcello pudesse voltar 50 anos depois do 25 de Abril, como acha que olharia para o País?

Não sei responder a isso. Marcelo, sendo mais moderno e aberto a novas tendências, era um homem profundame­nte conservado­r, do ponto de vista dos costumes, da sua visão do mundo, etc. Em relação à direita mais extrema, pode dizer-se que se Marcello Caetano olhasse para a constituiç­ão do grupo parlamenta­r do Chega, nenhum deles, incluindo o líder, teria o mínimo cabimento na sua representa­ção mental. Não estou a endeusar Marcello Caetano, estou apenas a reconhecer a sua enorme craveira intelectua­l, por um lado, e o seu desprezo pela mediocrida­de, por outro. ●

 ?? ??
 ?? ?? ◀
António Araújo, de 58 anos, é licenciado e mestre em Direito e professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universida­de Nova de Lisboa
◀ António Araújo, de 58 anos, é licenciado e mestre em Direito e professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universida­de Nova de Lisboa
 ?? ?? O autor diz que Marcello Caetano era na época o melhor posicionad­o para suceder a Salazar
O autor diz que Marcello Caetano era na época o melhor posicionad­o para suceder a Salazar

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal