Abril maior que o pensamento
Por alturas de abril, do Abril maior que o pensamento, gosto de escrever ao meu amigo Franco, com quem tantas vezes celebrei duplamente a jornada abrilista. Nos anos de Coimbra, onde estudávamos pelos idos de 80, o golpe militar dos cravos e a libertação italiana na II Guerra Mundial, a 25 de Abril de 1945, um dia tão luminoso como o nosso, foram sempre de celebração obrigatória. Com as cantorias habituais, do Zeca ao Bella Ciao, as histórias de um Portugal que ele amava e de uma Itália que o desencantava. Portugal e a sua revolução iluminavam-lhe a alma. Daqui a pouco, a ausência de Franco fará 20 anos, mas creio que lá por cima andará a celebrar os 50 anos da nossa revolução como poucos.
Em anos anteriores, escrevi-lhe a repetir a história que ele adorou desde o primeiro momento, como homem do teatro e da poesia que era, sobre o meu 25 de Abril da manhã inicial. Descrevi-lhe um quadro pictórico, que ele via como o ponto de partida de uma peça de teatro. Contei-lhe que não fiz nenhuma revolução. Nem sequer fui à tropa. Que só tinha 11 anos mas já sabia, paradoxalmente, o que era a palavra liberdade. A minha mãe deixava-me passar as tardes inteiras na brincadeira com os meus amigos. Passava as tardes de domingo nas matinés do cineteatro odemirense. Podia passar as tardes a jogar à bola no adro da igreja ou nos terreiros do castelo.
Quando estrearam as escolas novas, que tinham um campo de futebol de cinco novinho em folha, então, os Benfica-Sporting duravam dias e noites. Bebia laranjada e comia bolos-canudos ao lanche. Liberdade absoluta!
Descrevi-lhe Odemira como um sítio demasiado longe de tudo. Nada daquilo que alguns mais velhos segredavam – pides, medo, guerra – cabia no mundo das matinés, que nos traziam as aventuras de Bruce Lee ou as trapalhadas do Cantiflas, esse impagável Mário Moreno que arrebatava o riso do pequeno planeta pacatamente provinciano que era o nosso. Nesse tempo encantado, nesse mapa de um mundo distante, nunca tinha ouvido falar de política, nunca tinha ouvido falar de fascismo, sabia vagamente que havia um Presidente de um conselho qualquer.
Contei-lhe que no famoso dia estava eu a brincar no castelo com os meus amigos Frazão e Calinhos. O pai do Calinhos era militar e ele apareceu alvoroçado a dizer que havia uma guerra em Lisboa. Especulámos para tentar perceber se o pai dele estaria do lado dos bons ou dos maus. Estava entre os bons. Nós éramos, afinal, a geração que não tinha consciência política na revolução. Mas como logo descobrimos nos anos seguintes, éramos também a que necessitava desesperadamente de construir a sua própria memória política do que foi esse momento, do regime e da guerra que ficavam para trás. Precisávamos de referências para compreender porque é que o nosso pai, irmão, primo ou vizinho tinham ido para uma guerra cuja ameaça emergia, cada dia, no nosso próprio horizonte. Porque é que tudo mudara. Porque é que era tão bom viver ainda com mais liberdade do que aquela que já tínhamos, mas todos os outros, dotados de consciência política ou medo, pura e simplesmente, não tinham. Precisávamos de conhecer o País, o que fora e o que começava a ser, para justificar as nossas escolhas de vida. Políticas ou outras.
Apontei-lhe o nome de Salgueiro Maia, o meu herói, o homem que se ergueu contra o estado a que isto chegou. Para lá da guerra, Maia e os rapazes dos tanques, na feliz definição do livro de Adelino Gomes e de Alfredo Cunha, ergueram-se também contra um País desigual, onde as pessoas não eram livres, nem iguais. O fim da guerra, a liberdade, a igualdade entre portugueses, perante a lei e o Estado, a igualdade de oportunidades, são as causas maiores do 25 de Abril de 1974, mas sobretudo da vida em si própria. Quando as bússolas políticas e morais falham à esquerda e à direita, permanece esse programa imutável: temos de ser sempre livres e iguais. É isso que torna tão insuportável a ideia de um País democrático onde o filho de um Presidente pode aceder a privilégios nos hospitais públicos, mesmo que seja para outros e que a causa seja justa. Não foi para isso que Salgueiro Maia e os rapazes dos tanques acordaram naquela noite de há 50 anos. Não os deixemos morrer na nossa memória e consciência, diria Franco se estivesse aqui. Abbraccio, fratello mio. Bella Ciao! Bella Ciao!! ●