SÁBADO

Nó da pulseira

- Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

QUANDO OS MEUS PAIS já tinham desistido de ter mais filhos, a minha irmã implorou para que eles fossem pais outra vez. Ela tinha 7 anos e queria um irmão, ou uma irmã, o que viesse era bom, queria era que a barriga da minha mãe não tivesse sido casa só para um, que as brincadeir­as não fossem só entre ela e a imaginação, que houvesse alguém com quem pudesse ser todas as personagen­s que tinha na cabeça. Era filha única, e protestava muitas vezes “não quero ser sozinha!”, como se a infância ficasse a meio se não fosse partilhada com alguém pequenino como ela.

Um dia recebeu uma pulseira do Senhor do Bonfim, uma fita mágica onde se davam três nós que j uravam cumprir desejos. Quando a pulseira partia, atirava-se ao mar, e logo se via o que o mar trazia de volta. Então deu três nós certos para que não falhasse nada, enquanto segredava para dentro os desejos. Pediu para passar de ano e deu um nó, depois pediu para deixar de ter asma e deu outro nó, e por fim pediu para ter um irmão e deu um último e definitivo nó. Tentaram que ela se afastasse da ideia, mas quando se planta um desejo na cabeça vai tudo à frente – não há muros, nem montanhas, nem mares que o façam parar. Uma criança com um sonho é uma luz tão forte que ilumina tudo à volta.

Ela fincou o pé e não desistiu, chorava muito para ter companhia, sabia que lhe estava destinado mais alguém, só não sabia ainda quem. Um dia, para que não restassem dúvidas que a vontade vinha para ficar, tricotou uma bota pequenina e deu-a aos meus pais, para que eles não se esquecesse­m que ela podia ter 7 anos, mas não era de ideias soltas; para que soubessem que agora que havia aquela bota pequenina, só faltava um pé pequenino que lá coubesse. Não havia volta a dar – nem para os meus pais, nem para a minha irmã, nem para mim, que ainda não estava cá. A minha mãe e o meu pai lá fizeram contas para ver se ainda havia vontade e tempo para receber mais alguém, que isto de mudar os números da família não é coisa que se faça de um dia para o outro. Os meus pais – que já tinham arrumado as contas de quantos se sentavam à mesa – decidiram trocar as voltas ao futuro e aceitar o pedido da filha ainda única. A minha mãe esteve um ano a fazer tratamento­s de fertilidad­e para contrariar o corpo e o destino, e cada vez que voltava do médico, a minha irmã achava que ela já vinha grávida, não sabia que pelo meio havia coisas de crescidos que demoravam a ser feitas. A desilusão era a dobrar – a minha mãe sofria pelo sofrimento da filha, e pelo seu próprio; por não conseguir que o corpo fizesse ninho para o que havia de vir.

Às vezes a minha irmã via uma senhora grávida na rua, e dizia: “olha mãe, aquela senhora está grávida”, e a minha mãe a olhar para a sua barriga que ainda não tinha o tamanho que têm as barrigas quando trazem uma promessa lá dentro. Até que um dia, passados 4 anos, o meu pai foi ter com a minha irmã e disse-lhe: “Um dos desejos da tua pulseira vai-se cumprir.” O problema dos desejos grandes é que às vezes estão guardados na ordem do impossível, daquilo que se quer, mas que não se

O problema dos desejos grandes é que às vezes estão guardados na ordem do impossível, daquilo que se quer, mas que não se alcança

alcança. Então, a medo, ela primeiro confirmou que não era nenhum dos outros dois nós, até que finalmente percebeu que aquele último nó que ela tinha feito ia ser desatado. A barriga da minha mãe foi crescendo, e a imaginação da minha irmã foi crescendo com ela. Como seria o que estava dentro daquela barriga que ia esticando a pele até parecer que ia rebentar? Imaginava um irmão que estava a começar a ser agora, onde ela já tinha sido. Quando se diz a uma criança que ela vai ter o que mais quer, ela não conta esperar nove meses até ter nos braços o que já está em sonhos há tanto tempo. Os meses foram passando, e um dia a minha mãe disse à minha irmã: “Estás a ver aquela mala que está debaixo da cama dos pais? Se um dia não estiver lá, é porque a mãe foi para o hospital para nascer o teu irmão.” Até que um dia a mala não estava lá.

Na mala ia a roupa que eu iria vestir mal nascesse, e ia também o que a minha mãe ia vestir quando nos conhecêsse­mos pela primeira vez. Era a roupa para o nosso primeiro encontro. No dia em que eu nasci, eu não sei o que aconteceu aos olhos da minha irmã, mas sei que o que quer que tenha acontecido, foi por culpa e vontade dela. No primeiro dia em que me viu, a minha irmã tinha 12 anos. Foi um sonho que começou pequenino lá atrás, e que se começou a cumprir nessa manhã. E se hoje estou aqui a contar esta história, é por culpa de um dos nós que a minha irmã deu, numa pulseira que jurava cumprir os desejos de quem a usasse. ●

Na mala ia a roupa que eu iria vestir mal nascesse, e ia também o que a minha mãe ia vestir quando nos conhecêsse­mos

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Humorista O
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JUAN CAVIA

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