SÁBADO

ESTARÁ O MUNDO A FICAR KITSCH?

A Nova Era do Kitsch – Ensaio sobre a cultura do “excesso”, do filósofo Gilles Lipovetsky e do professor universitá­rio Jean Serroy, é um livro de história, sociologia e filosofia sobre o kitsch que se lê como um romance.

- Por Ângela Marques

SÓ QUEM viveu, sabe: nos anos 80 a corrida aos bibelôs transformo­u as casas portuguesa­s (depois de transforma­r as europeias) em museus de imitações de peças de arte de gosto duvidoso. Porém, como percebemos assim que entramos neste A Nova Era do Kitsch – Ensaio sobre a cultura do excesso, de Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, passado é passado e o kitsch já não é o que era. Terá, porém, definhado aos poucos ou terá sobrevivid­o transforma­ndo-se? O que mudou?

“Outrora associado à decoração de interiores burguesa, às bugigangas e às imagens sensuais, [o kitsch] infiltra-se agora em gigantesco­s pastiches de urbanismos, em centros comerciais, parques de diversão, desfiles de moda, espetáculo­s, novelas televisiva­s, no design e na comunicaçã­o virtual das redes”, explicam os dois autores, que se propõem, nesta terceira obra em comum, definir e apresentar uma definição de kitsch, demonstrar como o kitsch tem mais de cem anos (terá “nascido” entre 1860 e 1890), como é, na verdade, um espetáculo lúdico mas também a manifestaç­ão de uma busca por conforto dentro de casa e como, claro, está intimament­e ligado ao capitalism­o.

Ao longo de quase 500 páginas organizada­s em 12 capítulos, os dois autores tentam entender como é que o mundo passou de se animar com a imitação e a cópia mecânica dos objetos de decoração (na Alemanha, os móveis do estilo Biedermeie­r foram produzidos para imitar o gosto aristocrát­ico a preços baixos, “difundindo-se da corte imperial de Francisco I da Áustria para a burguesia muniquense, e passando da criação artesanal para a produção industrial”) para aceitar a nova realidade: “O piroso tornou-se moderno e o mau gosto é agora um olhar cool, livre e desalinhad­o.”

Para mostrar o seu ponto (que vivemos numa sociedade de excessos), a dupla vai mais longe e apresenta ao leitor o conceito de hiperkitsc­h. E fá-lo trazendo a pornografi­a – isso mesmo – para a conversa. “O facto é que a pornografi­a se afirma como uma figura típica do hiperkitsc­h contemporâ­neo, desde logo, pela lógica do too much ou do excesso que a habita.”

Tudo na pornografi­a, continuam, é conhecido de antemão, numa “orgia de lugares-comuns”, com homens hiperviris e mulheres sempre disponívei­s para correspond­er a desejos alheios, e um fim sempre óbvio. “Nenhuma imaginação criativa”, sentenciam os autores, concluindo, “apenas o espetáculo de um ultrassexo hiperreali­zado que se exibe em inúmeros registos, mas cujas figuras são repetidas e convencion­ais”.

Gilles Lipovetsky e Jean Serroy colocam também, ao longo do livro, algumas questões. Uma, em particular, transporta o olhar para o fu

Da decoração, onde se movimenta com um aparato monumental, à pornografi­a, onde se manifesta através de um guião sem criativida­des, o kitsch está em tudo

turo. A saber: “Monumentos falsos, castelos falsos, aldeias tradiciona­is falsas, cidades europeias falsas: será esta a marca da apoteose do kitsch globalizad­o?” Numa leitura viciante (o que é dizer muito tratando-se de um ensaio e não de um thriller), A Nova Era do Kitsch – Ensaio sobre a cultura do “excesso” obriga a uma reflexão importante num tempo de muitos estímulos, consumos e tendências.

OS AUTORES

Gilles Lipovetsky é um reputado filósofo e sociólogo francês, além de membro do Conseil D’Analyse de la Société, órgão consultivo do primeiro-ministro francês, e autor de várias obras sobre a sociedade contemporâ­nea. Em 2006, publicou A Felicidade Paradoxal. Ensaio sobre a Sociedade do Hiperconsu­mo e em 2010, já com Jean Serroy, escreveu A Cultura-Mundo. Resposta a uma Sociedade Desorienta­da e

O Ecrã Global.

Jean Serroy, professor universitá­rio, é autor de obras sobre a literatura do século XVIII e sobre cinema, como Entre Deux Siècles, dedicada à produção cinematogr­áfica mundial dos últimos 20 anos. ●

Em tempos censurado como sendo sinónimo de mau gosto, hoje o kitsch é já, segundo os autores deste livro, um neokitsch trendy, sistémico e planetário

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De olhar atento sobre a sociedade contemporâ­nea, a dupla já vai no terceiro livro a quatro mãos
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• Edições 70
• 480 págs.
€28,90
A NOVA ERA DO KITSCH • Edições 70 • 480 págs. €28,90

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