SÁBADO

Sopa de abóboras

- Politólogo, escritor João Pereira Coutinho Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

SEMPRE GOSTEI DE BAILES DE MÁSCARAS,

mas às vezes pergunto se a política lusa não estará a abusar na dose. É tudo tão óbvio que mesmo um cliente da paródia acaba por bocejar ainda no primeiro acto.

E o primeiro acto foi montado a 10 de Março, com a vitória tangencial da AD. Luís Montenegro jurou a todos os deuses que não faria entendimen­tos de Governo com o Chega. Mas nem essa esfrega demorada com o mais poderoso desinfecta­nte sossegou os cães pisteiros. À força, querem meter o homem numa camisa negra, interpreta­ndo cada gesto, cada palavra, cada suspiro como uma rendição abjecta ao fascismo.

Se muda um logótipo, é fascista. Se evoca Camões, é fascista. Se sorri (ou não sorri), é fascista. A nossa esquerda faz lembrar aqueles motoristas de táxi que iniciam qualquer conversa, sobre qualquer tema, só para poderem acusar os “pretos” das maiores vilanias.

O segundo acto foi ainda pior: Pedro Passos Coelho regressou das trevas para apresentar um livro herético. No fim do ritual satânico, saiu de braço dado com André Ventura, deixando na livraria um rasto intenso a enxofre.

Admito que existam crianças de todas as idades que realmente acreditam nesse filme. Mas adultos que se habituaram a viver numa democracia pluralista sabem que não existem livros heréticos; e que a opinião de Passos sobre a relação entre a AD e o Chega é uma opinião legítima (e, para mim, errada), embora a ponte que ele faz entre o centro-direita e a direita populista possa ser determinan­te numa candidatur­a pessoal a Belém.

É isso, e só isso, que indigna as matilhas que não são ingénuas: querem ver que a Presidênci­a da República volta a cair no colo da direita pela quinta vez consecutiv­a? A brincar, a brincar, podem ser 30 anos de deserto.

No terceiro acto, entrou Pedro Nuno Santos e a sua carta. O líder do PS quer acordos para “valorizar” as carreiras dos professore­s, dos profission­ais de saúde e das forças de segurança. Mas só nos próximos 60 dias, de preferênci­a num orçamento rectificat­ivo. Findo esse prazo, a nossa Cinderela transforma-se em abóbora e já não consegue assinar acordo nenhum. Tradução: quando chegar o Orçamento do Estado, já eu estarei de volta ao meu casebre.

Sem surpresas, Montenegro agradeceu a disponibil­idade e lembrou que o diálogo será “no tempo e no modo” convenient­es ao Governo. Também é uma forma de entrar no baile: se Pedro Nuno quer fugir a meio sem deixar um sapatinho sequer, Montenegro prefere retê-lo na pista e pisar-lhe os calos até a dança acabar. Moral da história?

Todos representa­m o seu papel. Excepto os crédulos das claques, que vivem a ficção como se fosse realidade.

E POR FALAR EM FICÇÃO:

gostei de ver Pedro Nuno Santos, em entrevista à CNN, a partilhar com os portuguese­s a sua filosofia sobre políticos a contas com a justiça. Miguel Albuquerqu­e, arguido na Madeira, não devia recandidat­ar-se ao governo regional. Mas o que fazer com o seu camarada Eduardo Vítor Rodrigues, condenado em primeira instância a perda de mandato por peculato, e que continua à frente de Vila Nova de Gaia como se nada fosse?

A cabeça de Pedro Nuno implodiu por dentro com a pergunta do jornalista. Mas depois, com uma tenacidade digna de um alpinista, o homem lá conseguiu agarrar-se às cordas para sacar do bolso uma cartada triunfal. O autarca de Gaia está em plenas funções, explicou Pedro Nuno. O outro, o madeirense, quer reentrar nelas. Donde, podemos concluir que a exigência ética sobre os políticos só vale para quem está fora. Os de dentro, ungidos pelo cargo, são intocáveis e inamovívei­s.

É uma bela mensagem, sem dúvida, que deve ter deixado muitos titulares de cargos políticos a fazer contas à vida. Abusar é agora, pessoal! Depois é tarde, Inês é morta. ●

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