Cinquenta anos de privilégio
Éum privilégio poder escrever este texto sem ter de utilizar subterfúgios para disfarçar mensagens subliminares ou recorrer a esquemas complexos com o objetivo de iludir os censores do lápis azul que até 1974 exerciam um juízo sobre o que podia ou não ser publicado. É um privilégio poder exercer a profissão de jornalista sem receio de ser detido por publicar uma notícia digna desse nome. É um privilégio poder escolher uma fotografia apenas e só pelo seu valor noticioso. É um privilégio poder aceder à informação ou àqueles que a detêm sem correr o risco de cair nas malhas de um sistema repressivo. É um privilégio poder escrutinar todos os poderes instalados sabendo que com isso estamos a contribuir para uma democracia mais forte e para uma sociedade mais informada. É um privilégio saber que não existem jornais, revistas, filmes ou livros que estejam vedados aos cidadãos, a não ser pela sua própria escolha. É um privilégio saber que aquilo que publicamos tem impacto e consequências, que os poderes públicos e privados são responsabilizados, que o jornalismo contribui para a mudança e o progresso sociais. É um privilégio não saber o que era não poder fazer tudo isto.
Estes privilégios são possíveis porque há 50 anos um grupo de militares decidiu – nas palavras intemporais do capitão Salgueiro Maia, que recordamos nesta edição especial – marchar para Lisboa para “acabar com o estado a que chegámos”. Poder-se-á dizer que o fim do regime era inevitável, uma questão de tempo, perante o avanço inevitável do progresso, desenvolvimento e democratização europeus. Mas a verdade é que foi graças à coragem daquele grupo de homens que o Estado Novo caiu como um baralho de cartas, naquele momento e não noutro. Foi a coragem de Salgueiro Maia frente às metralhadoras que defendiam o que restava do regime que contagiou aqueles que viviam com medo, em opressão, obedecendo a ordens mesmo que com elas não concordassem, a libertarem-se e, por sua vez, a libertar-nos a todos. Foram eles que fizeram com que a partir daí muito do que era proibido passasse a ser permitido, dando a todos os portugueses os privilégios da escolha, da liberdade de expressão, reunião e autodeterminação e todas as outras liberdades que hoje tomamos como garantidas, mas que não o eram até então.
A história do País que construímos a partir desse momento é feita de múltiplas realidades. Houve avanços, progressos e sucessos, mas também falhas, erros e fracassos. Muito mudou para melhor, mas muito poderia ter melhorado muito mais. Essa noção é, em si mesma, um privilégio que a liberdade nos deu. Ela permitiu-nos criar elevadas expectativas para o futuro, sonhar com mais e melhor para as nossas famílias e comunidades, agir o melhor que soubemos e no fim concluir que tudo o que conseguimos alcançar não foi – ainda não foi – o suficiente para cumprir os desígnios de Abril. Mas, ao contrário do que algumas mentes possam querer fazer crer, os problemas do País, que existem, não são culpa da revolução. Eles são uma consequência da nossa incapacidade, enquanto sociedade, de fazer melhor para acabar com a pobreza, desigualdade e exclusão sociais, apesar do muito que foi feito a partir daquela primavera de 1974.
Poder escrever estas palavras sem preocupações, ter capacidade de escolha e a possibilidade de viver em liberdade sem saber o que é a opressão e o medo, sem receio da interferência do Estado é um privilégio, uma dívida que os herdeiros da Revolução nunca poderão pagar devidamente aos seus autores. Resta-nos honrar esse privilégio, recordá-lo e preservá-lo para as gerações que nos seguirão – e nesse processo fazer tudo ao nosso alcance para construir uma sociedade melhor, mais justa, igualitária e tolerante, com espaço para diálogo construtivo entre ideias opostas, conscientes de que há uma diferença entre adversários e inimigos. Uma matéria, aliás, em que os verdadeiros democratas de Abril nos deram uma grande lição. ●