“PCP está a perder a criatividade – e Cunhal era um criativo”
O investigador e historiador, com vários livros publicados sobre o PCP, é o autor de Álvaro Cunhal – Retrato Pessoal e Íntimo, que a SÁBADO oferece na próxima semana.
Para o investigador Adelino Cunha, o histórico secretário-geral do PCP Álvaro Cunhal “era um homem de riscos” e de “grande criatividade”. Nasceu entre a burguesia, mas fez “um ato de subversão intelectual” e tornou-se “filho adotivo do proletariado”, conta o historiador. Na clandestinidade viveu uma “morte em vida” — longe da família, mudou de nome e amigos, foi preso e torturado. Fugiu do Forte de Peniche para o exílio e geriu o partido à distância, num contínuo rasgo de criatividade que faltará ao partido hoje. “Parece-me que o PCP está a ficar refém de si próprio: está a perder capacidade para interpretar o mundo”, diz Adelino Cunha.
Cunhal tinha origens burguesas. Como é que acabou comunista?
Ele vem de uma família da zona da serrada Estrela, de Seia. Opaiéadvogado, uma pessoa de prestígio. Cunhal, de facto, tem essas origens burguesas. Quando se junta ao PCP,é quase um ato de subversão intelectual: alguém de origem burguesa juntar-se ao partido que quer combater a burguesia. Ele assumiu o epíteto de “filho adotivo do proletariado” – eé assim que ele supera a certidão de nascimento: transforma a questão política numa questão semântica.
Mas de que maneira é que ele ganha “consciência de classe”?
Dá para compreender Álvaro Cunhal muito no seu alter ego literário dele, o Manuel Tiago. Lê-se muito daquilo que são as suas opiniões sobre o mundo e episódios políticos que ele só conta quando usa a sua capa de escritor. Cunhal descreve muitos dos choques que teve na sua infância, na sua pré-adolescência, precisamente com a exploração dos trabalhadores agrícolas, com a diferença de classes. Isso terá contribuído muito para a sua consciência, ainda apolítica. É quando ele vem para Lisboa, quando começa a entrar nos grupos de ação académica, que ele começa a formar bem a sua personalidade política. E depois há um momento iniciático, aos 22 anos, quando ele vai pela primeira vez a Moscovo. É convidado como líder do comité regional de Lisboa. Aquilo transforma-lhe a cabeça. No fundo, estava a visitar a pátria do socialismo, o primeiro Estado operário do mundo.
Quando se entrega de corpo e alma ao PCP, há uma espécie de morte em vida para Cunhal.
Para a família, sim. É numas férias em São Pedro de Moel que um jovem Cunhal diz ao pai e à mãe que vai para a clandestinidade. Há de facto uma “morte em vida” para a mãe, Mercedes, que já tinha passado pela morte de dois filhos. Na clandestinidade, Cunhal afasta-se da família.
Com a morte dos irmãos devido à tuberculose, a morte rodeia Cunhal desde muito jovem. Isso torna-o mais religioso ou niilista?
De facto, da parte da mãe, ele herda o respeito por esses valores católicos conservadores. Ao longo da vida, Cunhal sempre lidou muito bem com a
“Cunhal ficaria chocado se ouvisse falar em ‘fadiga democrática’ 50 anos depois do 25 de Abril”
Igreja. Aliás, há documentos em que apela ao diálogo do PCP com os católicos, com os católicos progressistas – mas atenção, ele nunca foi um homem de ter uma fé religiosa. Há uma entrevista curiosa em que Cunhal fala da alegria que foi o nascimento de Eugénia Cunhal, já após existir morte na família. Ou seja: a questão da morte foi marcante, mas que nunca deixou as pessoas paralisadas para a alegria da vida.
Qual é a grande figura de influência de Álvaro Cunhal?
O pai, Avelino Cunhal, é a grande referência, em termos intelectuais, de valores e de expressão artística e literária. Como Manuel Tiago, por exemplo, Cunhal é inspirado pelo realismo do pai – os seus breves contos são todos neorrealistas. E depois ao nível das liberdades cívicas: quem defendia Cunhal em tribunal era o pai, o que mostra uma cumplicidade notável.
Com a mãe a relação era mais tensa?
Quanto à mãe, alguns estudos biográficos sobre o PCP e Cunhal falam sobre uma relação tensa com a mãe, mas do que pude ir investigando não é bem assim. De facto, a mãe representa um certo tipo de valores, um certo conservadorismo, mas nunca se perdeu aqui a relação de mãe e filho. Aliás, a mãe visitava-o na prisão – e na terceira prisão, em Peniche, que é quase uma prisão perpétua, a mãe escreve-lhe que já não tem “mais forças” para o ver.
A mãe aceitava bem o seu estilo de vida?
Se for no sentido de não o aceitar porque era uma perda familiar para ela, sim. Daquilo que eu estudei, não me parece que houvesse aqui nenhum tipo de tensão entre a mãe e o filho que não fosse esta. No fundo, aderir ao PCP era desaparecer civicamente, a pessoa ia para um local que não sabia onde é que era; novos nomes, novos companheiros, novos amigos; não podia contactar nunca mais a família; se tivesse filhos, tinha de entregar os filhos a familiares ou, a partir dos anos 60, colocá-los na União Soviética. Era uma rutura irreversível com a família. A tensão com a mãe vinha de um amor que se sabe que se ia perder – e não com a rejeição do facto de ele ser comunista.
No livro conta que a mãe obrigou uma namorada do partido a entrar pelas traseiras.
Esse caso é curioso. [Risos] Quem o conta é Cândida Ventura, uma das grandes figuras do comunismo português e a primeira mulher a ascender ao comité do secretariado do PCP. Na altura, uma mulher muito bonita que teve essa proximidade com Cunhal. Frequentava a casa do Álvaro Cunhal aqui em Lisboa, na R. Miguel Bombarda – e a mãe dele obrigava-a a entrar sempre pela porta das traseiras. Ela vestia-se de forma despretensiosa, roupa de militante política, não de menina da cidade. Avelino Cunhal até ficava chateado: “Porque é que a amiga do meu filho tem de entrar pela porta das trasei
ras?” Mas Cândida Ventura contava isso sem qualquer acrimónia.
Dentro do PCP, como é que ele conseguiu catapultar-se internamente?
Em primeiro lugar, é porque o PCP sucessivamente perdia os seus dirigentes. Aliás, é no regresso de Moscovo que o Bento Gonçalves, a pessoa mais dedicada à implementação de regras conspirativas, é preso perto da Maternidade Alfredo da Costa. Depois, é porque Cunhal é reconhecido por toda a gente como um intelectual, um homem fortemente leninista que é capaz de teorizar. A ele e ao Júlio Fogaça, que era o seu rival informal do ponto de vista intelectual.
Até porque foi preso várias vezes. Isso deve dar reputação.
Foi preso três vezes e não falou. Os comunistas viviam na certeza de que iriam ser presos, torturados e de que a prisão teria um tempo ilimitado. Eram revolucionários profissionais a tempo inteiro.
Que tipo de torturas faziam?
Havia tortura física, como dar alfinetadas nos ouvidos, e a tortura do sono e da estátua. Uma vez chegou a ficar cinco dias inconsciente. A PVDE fazia também uma tortura de humilhação, como não deixar mulheres menstruadas trocar de roupa, nem ir à casa de banho. Cunhal, por exemplo, tinha problemas gástricos e os guardas da Penitenciária de Lisboa chegavam a recusar dar papel — a não ser que ele pedisse “por favor”. Uma devassa completa da intimidade.
Cunhal ganhou alguma aura com a fuga de Peniche?
Sim. Aliás, eu sou um privilegiado porque as pessoas com quem falei ajudaram a reconstituir a fuga toda. Primeiro, um momento decisivo: quando Joaquim Gomes consegue aliciar um guarda da GNR, que tinha problemas depois com o álcool e, digamos, uma certa vulnerabilidade financeira. Durante a fuga, ainda neutralizaram um guarda com clorofórmio (Cunhal pôs uma coisa na língua para não sufocar). A meio da fuga, Cunhal pensa desistir, por exemplo. Mas lá descem da muralha do Forte de Peniche – e até o Guilherme da Costa Carvalho cai numa árvore, parte a cabeça, enfim… um drama incrível.
Mostrou a fragilidade do regime.
Foi uma fuga de tal forma monumental que o Estado Novo reforçou a sua política em relação às prisões e ao próprio PCP. A fuga é brilhante e obrigou Álvaro Cunhal a fazer uma coisa nunca antes feita. É a primeira vez que o PCP põe a sua direção no estrangeiro.
Era difícil gerir um partido em exílio?
Era difícil. Após exilar-se em Moscovo, e depois em Bucareste e Paris, é a primeira vez que o PCP tem a direção política no exterior. Havia um homem, que eu entrevistei para o livro, também já faleceu, o Joaquim Gomes, que era o homem da pasta. Era ele que garantia as ligações, que fazia o contacto de direção. Era muito difícil e podia demorar meses. Entre preparar documentos, preparar a saída do País e chegar ao destino, Paris… Arriscava sempre.
Quando se dá o 25 de Abril, Cunhal está exilado. Ele continua a ser uma figura de proa desse dia?
Sem dúvida. No congresso Rumo à Vitória, que é aprovado no Congresso de Kiev, em 1965, Cunhal antecipa quais é que são as condições para o Estado cair. Acabou por prever que as Forças Armadas teriam de alinhar, por exemplo. O PCP percebe que não bastava organizar o movimento operário, não chegava ter setores sociais do seu lado, era preciso ter os militares. Além de que uma grande parte do sucesso de Abril deve-se também ao PCP, o único partido que está organizado durante todos os anos do regime.
O que é que Cunhal acharia do PCP de hoje?
O PCP teoricamente ainda é marxista-leninista. É um partido revolucionário que defende e representa a classe operária e tem uma ideia de como transformar a sociedade. E parece-me que o PCP está a ficar refém de si próprio: está a perder capacidade para interpretar o mundo. Os movimentos sociais mudaram, estão fragmentados e muito focados nas redes sociais. Parece-me que o desafio é como é que o PCP, enquanto partido marxista-leninista, pode agregar aquilo que está fragmentado. Parece-me que tem perdido muito a sua criatividade – e eu acho que Álvaro Cunhal era profundamente criativo. Por exemplo, vê-se pela forma como consegue sair da Perestroika e de um programa político muito marcado, o Rumo à Vitória, para esta democracia do século XXI.
E como é que lidaria Cunhal com o fenómeno populista de direita?
O que acho que deixaria Cunhal muito chocado – e que me deixa a mim também – é como é que nós com 50 anos de democracia nos atrevemos a falar em fadiga democrática, cansaço democrático. Cunhal não perceberia a fadiga de liberdade. São razoavelmente controversas, em particular quando são interessantes ou profundas. Esta situação deve-se em parte ao facto de a filosofia ter alterado de forma radical o seu âmbito no decurso da história e de muitas das investigações originalmente nela incluídas terem sido mais tarde excluídas. ●