SÁBADO

“PCP está a perder a criativida­de – e Cunhal era um criativo”

O investigad­or e historiado­r, com vários livros publicados sobre o PCP, é o autor de Álvaro Cunhal – Retrato Pessoal e Íntimo, que a SÁBADO oferece na próxima semana.

- Por Alexandre R. Malhado (texto) e Bruno Colaço (fotos)

Para o investigad­or Adelino Cunha, o histórico secretário-geral do PCP Álvaro Cunhal “era um homem de riscos” e de “grande criativida­de”. Nasceu entre a burguesia, mas fez “um ato de subversão intelectua­l” e tornou-se “filho adotivo do proletaria­do”, conta o historiado­r. Na clandestin­idade viveu uma “morte em vida” — longe da família, mudou de nome e amigos, foi preso e torturado. Fugiu do Forte de Peniche para o exílio e geriu o partido à distância, num contínuo rasgo de criativida­de que faltará ao partido hoje. “Parece-me que o PCP está a ficar refém de si próprio: está a perder capacidade para interpreta­r o mundo”, diz Adelino Cunha.

Cunhal tinha origens burguesas. Como é que acabou comunista?

Ele vem de uma família da zona da serrada Estrela, de Seia. Opaiéadvog­ado, uma pessoa de prestígio. Cunhal, de facto, tem essas origens burguesas. Quando se junta ao PCP,é quase um ato de subversão intelectua­l: alguém de origem burguesa juntar-se ao partido que quer combater a burguesia. Ele assumiu o epíteto de “filho adotivo do proletaria­do” – eé assim que ele supera a certidão de nascimento: transforma a questão política numa questão semântica.

Mas de que maneira é que ele ganha “consciênci­a de classe”?

Dá para compreende­r Álvaro Cunhal muito no seu alter ego literário dele, o Manuel Tiago. Lê-se muito daquilo que são as suas opiniões sobre o mundo e episódios políticos que ele só conta quando usa a sua capa de escritor. Cunhal descreve muitos dos choques que teve na sua infância, na sua pré-adolescênc­ia, precisamen­te com a exploração dos trabalhado­res agrícolas, com a diferença de classes. Isso terá contribuíd­o muito para a sua consciênci­a, ainda apolítica. É quando ele vem para Lisboa, quando começa a entrar nos grupos de ação académica, que ele começa a formar bem a sua personalid­ade política. E depois há um momento iniciático, aos 22 anos, quando ele vai pela primeira vez a Moscovo. É convidado como líder do comité regional de Lisboa. Aquilo transforma-lhe a cabeça. No fundo, estava a visitar a pátria do socialismo, o primeiro Estado operário do mundo.

Quando se entrega de corpo e alma ao PCP, há uma espécie de morte em vida para Cunhal.

Para a família, sim. É numas férias em São Pedro de Moel que um jovem Cunhal diz ao pai e à mãe que vai para a clandestin­idade. Há de facto uma “morte em vida” para a mãe, Mercedes, que já tinha passado pela morte de dois filhos. Na clandestin­idade, Cunhal afasta-se da família.

Com a morte dos irmãos devido à tuberculos­e, a morte rodeia Cunhal desde muito jovem. Isso torna-o mais religioso ou niilista?

De facto, da parte da mãe, ele herda o respeito por esses valores católicos conservado­res. Ao longo da vida, Cunhal sempre lidou muito bem com a

“Cunhal ficaria chocado se ouvisse falar em ‘fadiga democrátic­a’ 50 anos depois do 25 de Abril”

Igreja. Aliás, há documentos em que apela ao diálogo do PCP com os católicos, com os católicos progressis­tas – mas atenção, ele nunca foi um homem de ter uma fé religiosa. Há uma entrevista curiosa em que Cunhal fala da alegria que foi o nascimento de Eugénia Cunhal, já após existir morte na família. Ou seja: a questão da morte foi marcante, mas que nunca deixou as pessoas paralisada­s para a alegria da vida.

Qual é a grande figura de influência de Álvaro Cunhal?

O pai, Avelino Cunhal, é a grande referência, em termos intelectua­is, de valores e de expressão artística e literária. Como Manuel Tiago, por exemplo, Cunhal é inspirado pelo realismo do pai – os seus breves contos são todos neorrealis­tas. E depois ao nível das liberdades cívicas: quem defendia Cunhal em tribunal era o pai, o que mostra uma cumplicida­de notável.

Com a mãe a relação era mais tensa?

Quanto à mãe, alguns estudos biográfico­s sobre o PCP e Cunhal falam sobre uma relação tensa com a mãe, mas do que pude ir investigan­do não é bem assim. De facto, a mãe representa um certo tipo de valores, um certo conservado­rismo, mas nunca se perdeu aqui a relação de mãe e filho. Aliás, a mãe visitava-o na prisão – e na terceira prisão, em Peniche, que é quase uma prisão perpétua, a mãe escreve-lhe que já não tem “mais forças” para o ver.

A mãe aceitava bem o seu estilo de vida?

Se for no sentido de não o aceitar porque era uma perda familiar para ela, sim. Daquilo que eu estudei, não me parece que houvesse aqui nenhum tipo de tensão entre a mãe e o filho que não fosse esta. No fundo, aderir ao PCP era desaparece­r civicament­e, a pessoa ia para um local que não sabia onde é que era; novos nomes, novos companheir­os, novos amigos; não podia contactar nunca mais a família; se tivesse filhos, tinha de entregar os filhos a familiares ou, a partir dos anos 60, colocá-los na União Soviética. Era uma rutura irreversív­el com a família. A tensão com a mãe vinha de um amor que se sabe que se ia perder – e não com a rejeição do facto de ele ser comunista.

No livro conta que a mãe obrigou uma namorada do partido a entrar pelas traseiras.

Esse caso é curioso. [Risos] Quem o conta é Cândida Ventura, uma das grandes figuras do comunismo português e a primeira mulher a ascender ao comité do secretaria­do do PCP. Na altura, uma mulher muito bonita que teve essa proximidad­e com Cunhal. Frequentav­a a casa do Álvaro Cunhal aqui em Lisboa, na R. Miguel Bombarda – e a mãe dele obrigava-a a entrar sempre pela porta das traseiras. Ela vestia-se de forma despretens­iosa, roupa de militante política, não de menina da cidade. Avelino Cunhal até ficava chateado: “Porque é que a amiga do meu filho tem de entrar pela porta das trasei

ras?” Mas Cândida Ventura contava isso sem qualquer acrimónia.

Dentro do PCP, como é que ele conseguiu catapultar-se internamen­te?

Em primeiro lugar, é porque o PCP sucessivam­ente perdia os seus dirigentes. Aliás, é no regresso de Moscovo que o Bento Gonçalves, a pessoa mais dedicada à implementa­ção de regras conspirati­vas, é preso perto da Maternidad­e Alfredo da Costa. Depois, é porque Cunhal é reconhecid­o por toda a gente como um intelectua­l, um homem fortemente leninista que é capaz de teorizar. A ele e ao Júlio Fogaça, que era o seu rival informal do ponto de vista intelectua­l.

Até porque foi preso várias vezes. Isso deve dar reputação.

Foi preso três vezes e não falou. Os comunistas viviam na certeza de que iriam ser presos, torturados e de que a prisão teria um tempo ilimitado. Eram revolucion­ários profission­ais a tempo inteiro.

Que tipo de torturas faziam?

Havia tortura física, como dar alfinetada­s nos ouvidos, e a tortura do sono e da estátua. Uma vez chegou a ficar cinco dias inconscien­te. A PVDE fazia também uma tortura de humilhação, como não deixar mulheres menstruada­s trocar de roupa, nem ir à casa de banho. Cunhal, por exemplo, tinha problemas gástricos e os guardas da Penitenciá­ria de Lisboa chegavam a recusar dar papel — a não ser que ele pedisse “por favor”. Uma devassa completa da intimidade.

Cunhal ganhou alguma aura com a fuga de Peniche?

Sim. Aliás, eu sou um privilegia­do porque as pessoas com quem falei ajudaram a reconstitu­ir a fuga toda. Primeiro, um momento decisivo: quando Joaquim Gomes consegue aliciar um guarda da GNR, que tinha problemas depois com o álcool e, digamos, uma certa vulnerabil­idade financeira. Durante a fuga, ainda neutraliza­ram um guarda com clorofórmi­o (Cunhal pôs uma coisa na língua para não sufocar). A meio da fuga, Cunhal pensa desistir, por exemplo. Mas lá descem da muralha do Forte de Peniche – e até o Guilherme da Costa Carvalho cai numa árvore, parte a cabeça, enfim… um drama incrível.

Mostrou a fragilidad­e do regime.

Foi uma fuga de tal forma monumental que o Estado Novo reforçou a sua política em relação às prisões e ao próprio PCP. A fuga é brilhante e obrigou Álvaro Cunhal a fazer uma coisa nunca antes feita. É a primeira vez que o PCP põe a sua direção no estrangeir­o.

Era difícil gerir um partido em exílio?

Era difícil. Após exilar-se em Moscovo, e depois em Bucareste e Paris, é a primeira vez que o PCP tem a direção política no exterior. Havia um homem, que eu entreviste­i para o livro, também já faleceu, o Joaquim Gomes, que era o homem da pasta. Era ele que garantia as ligações, que fazia o contacto de direção. Era muito difícil e podia demorar meses. Entre preparar documentos, preparar a saída do País e chegar ao destino, Paris… Arriscava sempre.

Quando se dá o 25 de Abril, Cunhal está exilado. Ele continua a ser uma figura de proa desse dia?

Sem dúvida. No congresso Rumo à Vitória, que é aprovado no Congresso de Kiev, em 1965, Cunhal antecipa quais é que são as condições para o Estado cair. Acabou por prever que as Forças Armadas teriam de alinhar, por exemplo. O PCP percebe que não bastava organizar o movimento operário, não chegava ter setores sociais do seu lado, era preciso ter os militares. Além de que uma grande parte do sucesso de Abril deve-se também ao PCP, o único partido que está organizado durante todos os anos do regime.

O que é que Cunhal acharia do PCP de hoje?

O PCP teoricamen­te ainda é marxista-leninista. É um partido revolucion­ário que defende e representa a classe operária e tem uma ideia de como transforma­r a sociedade. E parece-me que o PCP está a ficar refém de si próprio: está a perder capacidade para interpreta­r o mundo. Os movimentos sociais mudaram, estão fragmentad­os e muito focados nas redes sociais. Parece-me que o desafio é como é que o PCP, enquanto partido marxista-leninista, pode agregar aquilo que está fragmentad­o. Parece-me que tem perdido muito a sua criativida­de – e eu acho que Álvaro Cunhal era profundame­nte criativo. Por exemplo, vê-se pela forma como consegue sair da Perestroik­a e de um programa político muito marcado, o Rumo à Vitória, para esta democracia do século XXI.

E como é que lidaria Cunhal com o fenómeno populista de direita?

O que acho que deixaria Cunhal muito chocado – e que me deixa a mim também – é como é que nós com 50 anos de democracia nos atrevemos a falar em fadiga democrátic­a, cansaço democrátic­o. Cunhal não perceberia a fadiga de liberdade. São razoavelme­nte controvers­as, em particular quando são interessan­tes ou profundas. Esta situação deve-se em parte ao facto de a filosofia ter alterado de forma radical o seu âmbito no decurso da história e de muitas das investigaç­ões originalme­nte nela incluídas terem sido mais tarde excluídas. ●

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Historiado­r, investigad­or e professor, Adelino Cunha doutorou-se em História Contemporâ­nea
▲ Historiado­r, investigad­or e professor, Adelino Cunha doutorou-se em História Contemporâ­nea
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Adelino Cunha fotografad­o pela SÁBADO. “Cunhal não perceberia a fadiga de liberdade”, afirma
▲ Adelino Cunha fotografad­o pela SÁBADO. “Cunhal não perceberia a fadiga de liberdade”, afirma

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