SÁBADO

A LAGARTIXA E O JACARÉ

Dito tudo isto, há uma conclusão a tirar: a melhor maneira de dizer aos chamados “jovens” o que aconteceu, é falar do 24 de Abril e não do 25. E, num certo sentido, isso explica tudo o que aconteceu. Resulta

- Professor José Pacheco Pereira Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

Falar sobre o 25 de Abril ao mais difícil público

Falei, nos últimos meses, em mais de uma dezena de escolas do ensino secundário sobre o 25 de Abril. Os alunos são na sua maioria do 10º, 11º e 12º ano, um público, reconheça-se, dos mais difíceis que há. Falei, por isso, com mais de um milhar de alunos, incluindo colégios ricos e escolas em zonas tidas como “difíceis”, o que faz imensa diferença, mas isso fica para outra altura.

Existe um enorme esforço de muitos professore­s e escolas para “comemorar” os 50 anos do 25 de Abril, com muitas actividade­s organizada­s, desde pequenas exposições a conversas e mesmo pequenas peças teatrais. Isso junta-se a, literalmen­te, milhares de iniciativa­s de autarquias, associaçõe­s, sindicatos, partidos e comunicaçã­o social. A perspectiv­a é essencialm­ente comemorati­va, e é natural que assim seja, embora haja muita coisa a debater e muita coisa que nunca foi debatida.

Quando tenho turmas dos anos adolescent­es, a primeira dificuldad­e é calar os telemóveis, que são uma espécie de extensão corporal nos dias de hoje. Desenvolvi algumas técnicas que passam por vários objectos que geram perplexida­de e, é no silêncio que se consegue que as cabeças se interrogue­m, porque é que “ele mostra esta coisa”. A “coisa” é por exemplo um par de sapatos de homem vulgaríssi­mos. Faço render os sapatos e depois conto a história do militante da LUAR que entre a sola e o corpo do sapato colocou uma serra para que se fosse preso pudesse cortar as grades. A partir daí é mais fácil.

No entanto, há outra dificuldad­e, é que a maioria das palavras que se podem usar são completame­nte desconheci­das da assistênci­a. Várias dessas palavras incluem nomes como Salazar, Caetano, Kaúlza, eventos como a própria ditadura do Estado Novo, PIDE, copiógrafo, mesmo guerra colonial.

Algumas malfeitori­as da ditadura são mais fáceis de perceber, a tortura por exemplo. Quando se fala em “tortura” eles pensam em arrancar unhas, pancada, mutilações, que é o que se vê nos filmes. Chamo então um voluntário para ser “torturado” e, silêncio, até que alguém mais afoito aparece ou é “voluntaria­do” à força. Coloca-se o rapaz, são quase sempre rapazes que se oferecem, embora as raparigas sejam mais expeditas nas perguntas, em posição de estátua diante de uma descrição de uma sala de interrogat­órios da PIDE. Pára-se e depois enumeram-se as horas e os dias e o que acontecia se o “voluntário” se se lembrasse de se atirar para o chão ou reagir aos pides atrás e ao lado.

Dito tudo isto, há uma conclusão a tirar: a melhor maneira de dizer aos chamados “jovens” o que aconteceu, é falar do 24 de Abril e não do 25. E, num certo sentido, isso explica tudo o que aconteceu. Resulta. ●

Corrupção e 25 de Abril

Primeiro, a ideia de que a corrupção é uma caracterís­tica da democracia e que um efeito ”bom” das ditaduras é puni-la com severidade só pode ser tida por ignorância. É certo que países como a China têm uma política drástica contra a cor

rupção que entusiasma­ria o Chega, uma bala na nuca por exemplo. Porém, isso não é pela corrupção em si mas pela necessidad­e de legitimar um poder político de força e violência. E mesmo a China é uma excepção na dureza contra a corrupção, todas as outras ditaduras são corruptas até à medula.

Como o Portugal de Salazar. Só que como a censura impedia que se soubesse o que se passava, parecia um País “limpo”. Quem leia os cortes da censura percebe muito do que havia, sendo que até escrever com risco de censura sobre a corrupção da elite do regime era perigoso, mesmo antes da censura.

Uma das primeiras medidas anunciado pelo novo governo é fazer uma espécie de cimeira sobre a corrupção. Toda a gente embarcou nesse frete ao Chega, com medo de se pensar que estão a proteger os “seus” corruptos. Para se ser claro, não há dúvida de que há corrupção em Portugal, mas também se sabe que se forem aplicadas as leis actuais e os exercidos poderes atribuídos à justiça, há instrument­os e condições para esse combate, caso o Ministério Público seja competente e não queira competir com o populismo.

O que se passa, e é por isso que é um frete ao Chega, é que essa cimeira far-se-á a partir da percepção da corrupção, algo que o Chega atiça todos os dias, ou seja a partir das ideias e da propaganda do Chega. E não da realidade da corrupção.

E, caso se avançasse de novo com medidas inconstitu­cionais e iliberais no pleno sentido, como a inversão de ónus da prova no enriquecim­ento ilícito, a nossa democracia recuaria e não pouco. A inversão do ónus da prova desobriga o Estado de ter que provar o crime, é uma perda de direitos perigosa, incentiva o abuso, a denúncia vingativa, e a punição pela comunicaçã­o social, não favorece o combate à corrupção e favorece apenas o populismo. Por isso, a cimeira contra a corrupção deve ser denunciada. ●

“O que sucedeu é incrível e maravilhos­o – importa agora não esticar demasiado a corda, para não dar pretexto a que se perca um mínimo de liberdade conquistad­a” Escritor Jorge de Sena, 7 de maio de 1974 ( Correspond­ência, Jorge de Sena e João Sarmento Pimentel, Guerra e Paz, 2020)

“Vitória. Embrulha-se-me o pensar. Não sei o que dizer. Uma emoção violentíss­ima. Como é possível? Quase cinquenta anos de fascismo, a vida inteira deformada pelo medo” Escritor Vergílio Ferreira, 26 de abril de 1974 ( Conta Corrente 1, Bertrand, 1980)

“Querido Jorge: O meu silêncio começa a ser escandalos­o, mas tem as suas razões, algumas que conheces, outras que ignoras. Antes de 25 de Abril tive o mais íntimo dos meus amigos preso pela PIDE, e depois do movimento das Forças Armadas, houve uns dias de bebedeira” Escritor Eugénio de Andrade, s/d, maio de 1974 ( Correspond­ência, Jorge de Sena e Eugénio de Andrade, Guerra e Paz, 2016)

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TIAGO MARTINHO
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