A LAGARTIXA E O JACARÉ
Dito tudo isto, há uma conclusão a tirar: a melhor maneira de dizer aos chamados “jovens” o que aconteceu, é falar do 24 de Abril e não do 25. E, num certo sentido, isso explica tudo o que aconteceu. Resulta
Falar sobre o 25 de Abril ao mais difícil público
Falei, nos últimos meses, em mais de uma dezena de escolas do ensino secundário sobre o 25 de Abril. Os alunos são na sua maioria do 10º, 11º e 12º ano, um público, reconheça-se, dos mais difíceis que há. Falei, por isso, com mais de um milhar de alunos, incluindo colégios ricos e escolas em zonas tidas como “difíceis”, o que faz imensa diferença, mas isso fica para outra altura.
Existe um enorme esforço de muitos professores e escolas para “comemorar” os 50 anos do 25 de Abril, com muitas actividades organizadas, desde pequenas exposições a conversas e mesmo pequenas peças teatrais. Isso junta-se a, literalmente, milhares de iniciativas de autarquias, associações, sindicatos, partidos e comunicação social. A perspectiva é essencialmente comemorativa, e é natural que assim seja, embora haja muita coisa a debater e muita coisa que nunca foi debatida.
Quando tenho turmas dos anos adolescentes, a primeira dificuldade é calar os telemóveis, que são uma espécie de extensão corporal nos dias de hoje. Desenvolvi algumas técnicas que passam por vários objectos que geram perplexidade e, é no silêncio que se consegue que as cabeças se interroguem, porque é que “ele mostra esta coisa”. A “coisa” é por exemplo um par de sapatos de homem vulgaríssimos. Faço render os sapatos e depois conto a história do militante da LUAR que entre a sola e o corpo do sapato colocou uma serra para que se fosse preso pudesse cortar as grades. A partir daí é mais fácil.
No entanto, há outra dificuldade, é que a maioria das palavras que se podem usar são completamente desconhecidas da assistência. Várias dessas palavras incluem nomes como Salazar, Caetano, Kaúlza, eventos como a própria ditadura do Estado Novo, PIDE, copiógrafo, mesmo guerra colonial.
Algumas malfeitorias da ditadura são mais fáceis de perceber, a tortura por exemplo. Quando se fala em “tortura” eles pensam em arrancar unhas, pancada, mutilações, que é o que se vê nos filmes. Chamo então um voluntário para ser “torturado” e, silêncio, até que alguém mais afoito aparece ou é “voluntariado” à força. Coloca-se o rapaz, são quase sempre rapazes que se oferecem, embora as raparigas sejam mais expeditas nas perguntas, em posição de estátua diante de uma descrição de uma sala de interrogatórios da PIDE. Pára-se e depois enumeram-se as horas e os dias e o que acontecia se o “voluntário” se se lembrasse de se atirar para o chão ou reagir aos pides atrás e ao lado.
Dito tudo isto, há uma conclusão a tirar: a melhor maneira de dizer aos chamados “jovens” o que aconteceu, é falar do 24 de Abril e não do 25. E, num certo sentido, isso explica tudo o que aconteceu. Resulta. ●
Corrupção e 25 de Abril
Primeiro, a ideia de que a corrupção é uma característica da democracia e que um efeito ”bom” das ditaduras é puni-la com severidade só pode ser tida por ignorância. É certo que países como a China têm uma política drástica contra a cor
rupção que entusiasmaria o Chega, uma bala na nuca por exemplo. Porém, isso não é pela corrupção em si mas pela necessidade de legitimar um poder político de força e violência. E mesmo a China é uma excepção na dureza contra a corrupção, todas as outras ditaduras são corruptas até à medula.
Como o Portugal de Salazar. Só que como a censura impedia que se soubesse o que se passava, parecia um País “limpo”. Quem leia os cortes da censura percebe muito do que havia, sendo que até escrever com risco de censura sobre a corrupção da elite do regime era perigoso, mesmo antes da censura.
Uma das primeiras medidas anunciado pelo novo governo é fazer uma espécie de cimeira sobre a corrupção. Toda a gente embarcou nesse frete ao Chega, com medo de se pensar que estão a proteger os “seus” corruptos. Para se ser claro, não há dúvida de que há corrupção em Portugal, mas também se sabe que se forem aplicadas as leis actuais e os exercidos poderes atribuídos à justiça, há instrumentos e condições para esse combate, caso o Ministério Público seja competente e não queira competir com o populismo.
O que se passa, e é por isso que é um frete ao Chega, é que essa cimeira far-se-á a partir da percepção da corrupção, algo que o Chega atiça todos os dias, ou seja a partir das ideias e da propaganda do Chega. E não da realidade da corrupção.
E, caso se avançasse de novo com medidas inconstitucionais e iliberais no pleno sentido, como a inversão de ónus da prova no enriquecimento ilícito, a nossa democracia recuaria e não pouco. A inversão do ónus da prova desobriga o Estado de ter que provar o crime, é uma perda de direitos perigosa, incentiva o abuso, a denúncia vingativa, e a punição pela comunicação social, não favorece o combate à corrupção e favorece apenas o populismo. Por isso, a cimeira contra a corrupção deve ser denunciada. ●
“O que sucedeu é incrível e maravilhoso – importa agora não esticar demasiado a corda, para não dar pretexto a que se perca um mínimo de liberdade conquistada” Escritor Jorge de Sena, 7 de maio de 1974 ( Correspondência, Jorge de Sena e João Sarmento Pimentel, Guerra e Paz, 2020)
“Vitória. Embrulha-se-me o pensar. Não sei o que dizer. Uma emoção violentíssima. Como é possível? Quase cinquenta anos de fascismo, a vida inteira deformada pelo medo” Escritor Vergílio Ferreira, 26 de abril de 1974 ( Conta Corrente 1, Bertrand, 1980)
“Querido Jorge: O meu silêncio começa a ser escandaloso, mas tem as suas razões, algumas que conheces, outras que ignoras. Antes de 25 de Abril tive o mais íntimo dos meus amigos preso pela PIDE, e depois do movimento das Forças Armadas, houve uns dias de bebedeira” Escritor Eugénio de Andrade, s/d, maio de 1974 ( Correspondência, Jorge de Sena e Eugénio de Andrade, Guerra e Paz, 2016)