SÁBADO

CADERNO DE SIGNIFICAD­OS

- Director-geral editorial adjunto Eduardo Dâmaso

É pelo capitão Maia, pelos rapazes dos tanques e por Carvalho, que vivemos há 50 anos em liberdade e podemos gritar, a plenos pulmões, 25 de Abril sempre! Carvalho e o megafone do capitão Maia

Há uns anos comecei a repescar memórias de infância. Fui escrevinha­ndo aqui e acolá mas nunca saí da história do Carvalho e do capitão Maia. O Carvalho era o rei do campo do Bemparece, pequeno santuário para o grupo de gaiatos que deixava correr os 10, 11 anos em intermináv­eis jogos da bola.

Aos domingos em que o Odemirense jogava em casa a caminhada para o Bemparece era um ritual. Uns bons 3 quilómetro­s por trilhos de terra batida e silvados que gotejavam de amoras arroxeadas e vermelhas no pino da canícula.

Ninguém queria perder o espetáculo daquele rapazinho esguio entre os postes, a voar para o ângulo superior direito ou esquerdo e a sacar a bola. Ou a atirar-se aos pés do avançado que lhe aparecia pela frente a franzir o cenho e a alçar a patorra para acertar uma biqueirada na bola.

Os putos ficavam sempre atrás da baliza do Carvalho, que os brindava com um estilo bandeado de marujo em terra. O Carvalho a defender e o Chicão da Aldeia Nova a furar as redes das balizas do adversário eram as grandes atrações dessas tardes de domingo. Era como se ali jogassem o Eusébio e o Zé Gato, que ouvíamos nos relatos da rádio.

Naquele tempo do princípio da vida, aí pelos inícios dos 70, porém, já todas as alegrias pareciam breves emoções fugidias. O futebol, as férias, o tempo do recreio, pequenos prazeres sempre limitados pelo relógio ou pelo calendário. Parecia que toda a vida ia ser assim, uma espécie de corrida de obstáculos em que o próximo era sempre maior ou poderia mesmo ser intranspon­ível.

Essa intranspon­ibilidade, esse sentimento difuso de apreensão quanto à existência de futuro, ficava em cada Natal com as imagens dos soldados que estavam na guerra e enviavam os votos de umas Festas felizes e cheias de “propriedad­es”, como tantas vezes eles diziam ou nós traduzíamo­s na pressa infantil de assimilar as palavras e as prosperida­des de qualquer maneira. Esse sentimento existia, crescia aos poucos de cada vez que ouvíamos que o Adriano, o Barradas ou o Armindo tinham partido para a guerra. Ou que o filho do senhor Guerreiro ficara lá. Só há futuro depois de lá irmos e regressarm­os vivos? Todo um buraco negro no universo…

Umdia,anotícia entrou de rompante na barbearia do senhor Marcos Cabrita, onde o Carvalho praticava como ajudante. A barbearia do senhor Marcos encheu-se de tristeza quando soubemos: o Carvalho ia cumprir a tropa, o nosso herói ia para a maldita guerra.

Não voltámos a ver Carvalho entre os postes da baliza porque o grande guarda-redes ficou no eterno descanso de uma qualquer sepultura improvisad­a na mata. Nunca mais se soube nada dele. É um dos desapareci­dos em combate que a história deixou para trás. Também isso o fez entrar para o território do mito. Tantos anos a família e nós próprios vivemos na esperança de que ele um dia saísse das brumas e entrasse pela porta da barbearia do senhor Marcos e dissesse: “Então putos, vamos bater umas bolas lá para fora!?”

A verdade é que o Carvalho nunca mais voltou e os putos todos os dias pensavam sobre o que fariam se tivessem de ir para a guerra quando chegassem os indesejado­s 18 anos. O tempo era já um imenso cronómetro que corria contra nós. O Carvalho constituiu-se como a nossa primeira memória da guerra que nunca travámos. Foi a nossa primeira baixa em combate e o nosso primeiro herói.

A nossa primeira grande tristeza até que o capitão Salgueiro Maia e o seu megafone resgatou o sonho da liberdade e o trouxe para a terra firme da nossa vida. Tantos anos depois continuamo­s a cantar, como gesta camoniana, o megafone do capitão Maia e os rapazes dos tanques de Santarém. Sim, ele acabou com a guerra, porra! Sim, desafiamos as 50 vozes da reação instaladas no parlamento, que procuram ajustes de contas com a história.

Contra o esquecimen­to, honrando a memória dos que lutaram e morreram por nós, queremos desfilar com as chaimites por todas as ruas e avenidas de um Portugal democrátic­o, que venceu o desafio da pobreza e da miséria que era o Estado Novo. Sim, foram eles que nos devolveram uma vida. Educação pública, Saúde pública, um mundo de livres e iguais. Sim, é pelo capitão Maia, pelos rapazes dos tanques e por Carvalho, que vivemos há 50 anos em liberdade e podemos gritar, a plenos pulmões, 25 de Abril sempre! ●

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