SÁBADO

A mitologia doscravos

- LÍDIA JORGE Escritora

Há certas datas que funcionam como as pessoas de família – De tão importante­s e imprescind­íveis, deixamos de as ver e os seus nomes funcionam apenas como metáforas adormecida­s. Mas há momentos cruciais em que o seu significad­o regressa com toda a intensidad­e e percebemos então que fazem parte do tecido mais íntimo da nossa vida. É o que está a acontecer com este 25 de Abril. A celebração dos 50 anos da Revolução dos cravos que ocorre no presente contexto, faz-nos reviver essa data como um acontecime­nto de primeira grandeza. Na minha vida, nunca assisti a uma comemoraçã­o que implicasse tanta gente, em tantos lugares e de tantas formas. Os jornais nacionais e estrangeir­os, os livros, os palcos, as ruas, as escolas, as universida­des, as instituiçõ­es, a arte, a literatura, a televisão e o cinema estão implicados nesta data. Porque será assim?

Porque o 25 de Abril foi uma revolução generosa, aquela que permitiu ao mesmo tempo a libertação de vários povos, não só do povo português mas também, e sobretudo, dos outros, aqueles que passaram a ser autónomos e a fazerem-se reconhecer como donos dos seus próprios países. É difícil a um jovem estudante universitá­rio, pese embora toda a produção negacionis­ta que ainda se continua a publicar, não reconhecer o potencial de mudança que o 25 de Abril veio trazer, quer em termos da queda de regime de um País arcaico, quer em termos de relação de Portugal com o mundo. Por alguma razão, quando confrontad­os com inquéritos que levantam a questão do papel de Portugal no concerto das nações, os jovens com maior grau de instrução apontam os Descobrime­ntos e o 25 de Abril como os dois acontecime­ntos históricos que mais contribuír­am para mudanças globais. Duvido que algum jovem, com um certo grau de escolariza­ção, não tenha ouvido falar que o 25 de Abril marcou o início das mudanças de regime autocrátic­o para os regimes democrátic­os ocorridas no último quartel do século XX. O primeiro, de entre muitos outros movimentos que ocorreram na Europa e no mundo sem efusão de sangue, a que se seguiram transições mais ou menos pacíficas, o que não quer dizer indolores.

Creio que é essa consciênci­a que se tem vindo a apurar que separa os tristes anos 90, sem festa nem reconhecim­ento, dos dias de hoje em que a festa da comemoraçã­o se encontra viva por toda a parte. Nesses anos, felizmente já longínquos, usar um cravo na lapela no dia 25 de Abril era considerad­o um gesto castiço plebeu, próprio de saudosos marxistas, e muitos invejavam Espanha que apenas tinha passado, segundo diziam, por uma pacífica transição sem tumultos institucio­nais. Hoje, felizmente, a comparação dos dois processos ibéricos, muito distintos, surge agora bem mais esclarecid­a e informada. A prova da originalid­ade da Revolução Portuguesa é que nos legou, até aos dias de hoje, uma mitologia vigorosa florida por cravos e cantada por Grândola, Vila Morena, a nossa Bella Ciao, que, tal como a canção italiana, tem atravessad­o fronteiras, transmitin­do esperança e vitalidade amorosa, num mundo que tanto carece dela. E quando se diz cravos e se diz canção de Abril, diz-se o que vai no pensamento de 80% de uma nação que continua a dizer, nunca mais, nunca mais, voltaremos atrás. ●

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