A mitologia doscravos
Há certas datas que funcionam como as pessoas de família – De tão importantes e imprescindíveis, deixamos de as ver e os seus nomes funcionam apenas como metáforas adormecidas. Mas há momentos cruciais em que o seu significado regressa com toda a intensidade e percebemos então que fazem parte do tecido mais íntimo da nossa vida. É o que está a acontecer com este 25 de Abril. A celebração dos 50 anos da Revolução dos cravos que ocorre no presente contexto, faz-nos reviver essa data como um acontecimento de primeira grandeza. Na minha vida, nunca assisti a uma comemoração que implicasse tanta gente, em tantos lugares e de tantas formas. Os jornais nacionais e estrangeiros, os livros, os palcos, as ruas, as escolas, as universidades, as instituições, a arte, a literatura, a televisão e o cinema estão implicados nesta data. Porque será assim?
Porque o 25 de Abril foi uma revolução generosa, aquela que permitiu ao mesmo tempo a libertação de vários povos, não só do povo português mas também, e sobretudo, dos outros, aqueles que passaram a ser autónomos e a fazerem-se reconhecer como donos dos seus próprios países. É difícil a um jovem estudante universitário, pese embora toda a produção negacionista que ainda se continua a publicar, não reconhecer o potencial de mudança que o 25 de Abril veio trazer, quer em termos da queda de regime de um País arcaico, quer em termos de relação de Portugal com o mundo. Por alguma razão, quando confrontados com inquéritos que levantam a questão do papel de Portugal no concerto das nações, os jovens com maior grau de instrução apontam os Descobrimentos e o 25 de Abril como os dois acontecimentos históricos que mais contribuíram para mudanças globais. Duvido que algum jovem, com um certo grau de escolarização, não tenha ouvido falar que o 25 de Abril marcou o início das mudanças de regime autocrático para os regimes democráticos ocorridas no último quartel do século XX. O primeiro, de entre muitos outros movimentos que ocorreram na Europa e no mundo sem efusão de sangue, a que se seguiram transições mais ou menos pacíficas, o que não quer dizer indolores.
Creio que é essa consciência que se tem vindo a apurar que separa os tristes anos 90, sem festa nem reconhecimento, dos dias de hoje em que a festa da comemoração se encontra viva por toda a parte. Nesses anos, felizmente já longínquos, usar um cravo na lapela no dia 25 de Abril era considerado um gesto castiço plebeu, próprio de saudosos marxistas, e muitos invejavam Espanha que apenas tinha passado, segundo diziam, por uma pacífica transição sem tumultos institucionais. Hoje, felizmente, a comparação dos dois processos ibéricos, muito distintos, surge agora bem mais esclarecida e informada. A prova da originalidade da Revolução Portuguesa é que nos legou, até aos dias de hoje, uma mitologia vigorosa florida por cravos e cantada por Grândola, Vila Morena, a nossa Bella Ciao, que, tal como a canção italiana, tem atravessado fronteiras, transmitindo esperança e vitalidade amorosa, num mundo que tanto carece dela. E quando se diz cravos e se diz canção de Abril, diz-se o que vai no pensamento de 80% de uma nação que continua a dizer, nunca mais, nunca mais, voltaremos atrás. ●