SÁBADO

Quando a rádio anunciou a liberdade

Reportagem de A Capital com Joaquim Furtado e Luís Filipe Costa

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I “sto mostra bem que as pessoas não estão mortas e podemos fazer desta terra um grande País” – dizia Luís Filipe Costa momentos depois da grande manifestaç­ão de euforia, assinalada por abraços e lágrimas de alegria a escorrerem pela cara de alguns, que se seguiu à leitura do comunicado do Movimento das Forças Armadas pelo qual se informava o País da rendição, no quartel do Carmo, do ex-presidente do Conselho e de membros do seu Governo.

Muitos populares, residentes na R. Sampaio Pina, frente ao Rádio Clube Português, vieram à janela e saudaram os militares que desde as 3h da madrugada ocupavam as instalaçõe­s daquele posto emissor, onde decorreu, segurament­e, uma das emocionant­es jornadas da vida da gente da Imprensa nas últimas décadas.

A notícia de que a população civil manifestav­a calorosame­nte o seu apoio ao Movimento das Forças Armadas chegou às instalaçõe­s do Rádio Clube Português ainda o comunicado “definitivo” não fora lido e embora já fosse do conhecimen­to de todos o texto da proclamaçã­o do Movimento, no qual se declarava que o Governo do País ia ser entregue a uma Junta de Salvação Nacional.

Entretanto, nos intervalos da leitura dos comunicado­s, o RCP transmitia música portuguesa até então completame­nte interdita pela censura de ir para o ar. José Afonso, José Mário Branco, José Jorge Letria, Sérgio Godinho entraram na casa de todos pela primeira vez, tranquilam­ente. Como, ainda na véspera, não era sequer imaginável. Como, um minuto antes das três da madrugada, Joaquim Furtado, locutor de piquete ao serviço de noticiário­s do RCP, não teria sequer pensado. Joaquim Furtado – que foi um dos atingidos por medidas repressiva­s que o obrigaram a abandonar o programa em que trabalhava na Rádio Renascença – ouviu, às 3h da manhã, quando aprontava noticiário­s, sentado na sua secretária:

“Isto é um golpe de Estado.” Um oficial da Força Aérea apontava-lhe uma pistola.

– Fiquei ali, normalment­e. Nem queria acreditar. Depois deram-me os comunicado­s e fui lê-los ao microfone – disse-nos Joaquim Furtado, manifestan­do evidente alegria por participar no momento histórico que então começava.

O RCP TRANSMITIA MÚSICA PORTUGUESA ATÉ ENTÃO INTERDITA PELA CENSURA DE IR PARA O AR

Pouco depois chegava ali Luís Filipe Costa que passou a fazer a leitura dos comunicado­s, alternadam­ente com os seus colegas.

Polícias desarmados e detidos

O Rádio Clube Português, que passara a ser o “posto” do Movimento das Forças Armadas, ser

viu, também, para receber alguns dos polícias que, entretanto, eram detidos e desarmados nas imediações. Com eles foram detidos um guarda-noturno e motorista de um brigadeiro que, a chorar, dizia:

– E eu que tinha de ir buscar o sr. brigadeiro para ir para o trabalho às 10 horas!

O motorista não conseguia compreende­r que o “sr. brigadeiro” não ia, naquela manhã, para o trabalho… E, ainda disse, no momento em que era transferid­o, com alguns polícias e o guarda-noturno, para as instalaçõe­s do Batalhão de Caçadores 5: “E eu que tinha de lá estar às 10 horas…”

– Nunca tive nada que me divertisse tanto, como ver a cara dos polícias a serem desarmados – comentava um dos presentes.

De facto, a cena processava-se em praticamen­te todos os casos, do modo seguinte: o guarda da PSP era chamado por um oficial que lhe pedia a pistola, solicitand­o-lhe que tomasse nota do número da arma para, oportuname­nte, a identifica­r. O guarda, tirava então um papel e uma esferográf­ica e anotava, o número da sua Walter. Depois, o momento mais difícil… Aquele em que tinha de entregar o cassetete. Só após alguns “mas”o retirava da cintura, entregando-o ao oficial que o detivera.

“Uns sete gatos pingados”

Durante a madrugada e a manhã os comunicado­s sucediam-se conforme a população tomou conhecimen­to através do Rádio Clube Português. Mas, nas instalaçõe­s do RCP os representa­ntes dos órgãos de informação conseguira­m também saber como decorriam as operações. O major Costa Neves, da Força Aérea, e os seus companheir­os de Arma, e outros do Exército – “éramos uns sete gatos pingados”, diziam – mantiveram-se em permanente contacto com o posto de comando, cujas indicações chegavam às instalaçõe­s do Quartel-Mestre-General do Exército onde, às primeiras horas da manhã, constava que tinham sido detidos dois generais.

Nunca, desde há muitos anos – há tanto que a memória é escassa para deles se lembrar – os jornalista­s em reportagem tiveram tantas facilidade­s para trabalhar e foram tão bem atendidos como na madrugada e dia de ontem, pelos majores e capitães que tomaram conta do Rádio Clube Português.

– Até que enfim que “esta coisa” entra na história do País, dizia um dos técnicos da casa. “Tive de trabalhar aqui 30 anos para ver isto.”

O major Costa Neves que foi um pouco o porta-voz do que ia sucedendo, embora acentuasse que não comandava coisa nenhuma – “sou talvez aquele que fala mais” – estabelece­u, tal como os seus companheir­os, contactos impression­antemente abertos com os jornalista­s em serviço junto do Posto do Comando do Movimento das Forças Armadas.

Contou-nos em determinad­o momento:

– Ontem, eram umas 9 horas quando cheguei aqui e parei o carro. Como tenho a fechadura da porta do lado do volante avariada saí pelo outro lado, mas esqueci-me de destrancar a porta e ficou

COMPARECIA NAS INSTALAÇÕE­S DO RCP UMA REPRESENTA­ÇÃO DE FAMILIARES DE PRESOS POLÍTICOS

O MAJOR COSTA NEVES FOI UM POUCO O PORTA-VOZ DO QUE IA SUCEDENDO, EMBORA ACENTUASSE QUE NÃO COMANDAVA COISA NENHUMA

lá dendentro a farda. Tinha de abrir outra vez o carro e vi-me aflito porque estava ali próximo um polícia (aquele que guardava a porta do ex-minnistro da Justiça). Tinha de uutilizar um arame para abrir a fefechadur­a e, para evitar problblema­s fui ter com o polícia, mmostrei-lhe os documentos do carcarro e disse-lhe: “Olhe o carro é mmeu, como vê, tenho de o abriabrir com um arame e venho dizer-zer-lhe isto para evitar algum engaengano.”

ConContinu­ou o major Costa Neves: – O polícia disse-me: “É a primeirame­ira vez que tal coisa me acontece.tece. SSe fosse sempre assim evitavam-vam-se muitos problemas. Ainda bembem qque o sr. me diz isso, porque se eu reparasse era capaz de acontacont­ecer alguma coisa grave” – foi assimas que consegui abrir o carroro sem problemas.

CDE de Lisboa e famílias de presos políticos

A meio da tarde, surgiu na esquina da R. Sampaio Pina um grupo de caras conhecidas: o prof. Francisco Pereira de Moura, Luísa Amorim, Caiano Pereira e outros elementos do Movimento da CDE de Lisboa. Solicitara­m aos oficiais presentes no Rádio Clube, que fosse lida aos microfones a declaração ontem distribuíd­a aos órgãos de Informação.

O prof. Pereira de Moura e os restantes elementos da CDE trocaram algumas impressões com os jornalista­s presentes e retiraram-se de seguida.

Entretanto, comparecia nas instalaçõe­s do RCP uma representa­ção de familiares de presos políticos detidos em Caxias. Dessa representa­ção fazia parte a mulher de José Manuel Tengarrinh­a, que foi candidato a deputado, pela oposição democrátic­a, nas últimas eleições e que se encontrava detido em Caxias integrado no grupo de “15 elementos” referido há dias numa nota noticiosa da SEIT.

Os referidos familiares pretendiam que as Forças Armadas in

terviessem no sentido de evitar que os elementos da DGS ainda em Caxias exercessem retaliaçõe­s nos detidos. A solicitaçã­o foi prontament­e comunicada aos comandos que, em resposta, disseram ir agir no sentido desejado.

Estações de rádio retomam programas habituais

A Emissora Nacional de Radio- difusão e o Rádio Clube Português que, devido aos acontecime­ntos de ontem, tinham suspendido a sua programaçã­o norrmal, difundindo os comunicado­s os do Movimento das Forças Armaadas que na segunda daquelas esstações emissoras instalara o seu u posto de comando, voltaram a transmitir regularmen­te os seus s programas.

Já esta manhã, o professor Marques Pereira, através dos microfones da EN deu a sua habitual lição de ginástica e ontem o RCP adotara uma linha de normalidad­e nas suas emissões integrando nas mesmas publicidad­e comercial.

Por seu turno, a Rádio Renascença e os Emissores Associados de Lisboa continuara­m na sua linha habitual de programas, que não chegaram a alterar. ●

A SENHORA DE SPÍNOLA SORRI-NOS, HESITA, ATENTA AOS CARTÕES QUE TESTEMUNHA­M A NOSSA QUALIDADE DE JORNALISTA­S

GRANDES “BICHAS”

Com medo do futuro, a população começou a guardar comida em casa. Tanto as mercearias como os talhos “tiveram vendas excecionai­s”. O Diário Popular, no dia 25 de Abril, dava conta das enormes filas à porta dos estabeleci­mentos de venda de víveres. “Em numerosos bairros da cidade, as pessoas, preocupada­s com os acontecime­ntos, formavam grandes `bichas'” nos supermerca­dos, mercearias, padarias, e compravam “grandes quantidade­s” de comida. A Capital descrevia que os talhos tiveram um movimento semelhante ao Natal ou à Páscoa. Também o peixe teve maior procura nesse dia. Até havia filas para pôr gasolina.

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A reportagem no jornal A Capital que saiu no dia 26 de abril de 1974
▲ A reportagem no jornal A Capital que saiu no dia 26 de abril de 1974
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Às 3h da manhã, um oficial da Força Aérea apontou uma pistola a Joaquim Furtado e disse-lhe: “Isto é um golpe de Estado”
◀ Às 3h da manhã, um oficial da Força Aérea apontou uma pistola a Joaquim Furtado e disse-lhe: “Isto é um golpe de Estado”
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Luís Filipe Costa leu, aos microfones do RCP, um dos comunicado­s do Movimento das Forças Armadas
◀ Luís Filipe Costa leu, aos microfones do RCP, um dos comunicado­s do Movimento das Forças Armadas

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