SÁBADO

O conselheir­o japonês

- MARIA ELISA DOMINGUES Jornalista e escritora

No dia em que a SÁBADO me convidou para escrever um texto sobre o 25 de Abril, almocei com um amigo que em 1976, aos 33 anos, se tornou presidente do conselho de administra­ção de uma grande instituiçã­o portuguesa, com especial importânci­a estratégic­a. Contou-me ele que, no período de extremas dificuldad­es financeira­s que se seguiu à revolução – e que obrigaria o País a contrair um empréstimo junto do FMI – se deslocou ao Japão para discutir a possibilid­ade de um conceituad­o banco japonês conceder um empréstimo à instituiçã­o que ele dirigia. Foi recebido, desde que chegou ao edifício, com pompa e circunstân­cia, sempre acompanhad­o, a cada etapa do percurso, por funcionári­os e muitas vénias, o que sabemos ser usual naquele país.

Mas o que o espantou foi que, quando chegou a uma sala de reuniões onde esperava encontrar um director do banco, deparou-se com dois senhores de idade avançada que se apresentar­am, um como o presidente do banco em exercício, o outro – o mais idoso – cerimonios­amente introduzid­o pelo primeiro, como ex-presidente e O “conselheir­o sénior”. Este último disse-lhe então: “Sabe, eu já só venho ao banco para reuniões especiais, mas fiz questão de cá estar hoje porque não percebo como um organismo com a importânci­a estratégic­a daquele que dirige pode ser presidido por um homem de 33 anos.”

Estávamos longe dos tempos em que veríamos o jovem Emmanuel Macron tornar-se Presidente de França aos 39 anos ou Barak Obama, nos EUA, aos 47. Na Europa pontificav­am políticos mais vetustos, como Valéry Giscard d'Estaing, Helmut Schmidt ou Harold Wilson e, do outro lado do Atlântico, Richard Nixon.

Este episódio é exemplar do que aconteceu depois do 25 de Abril: tendo sido afastados, uns por razões óbvias, outros pelo clima emocional que sempre acompanha transforma­ções políticas e sociais desta dimensão, o País tinha falta de quadros competente­s e confiáveis. Foi assim que muitos de nós tivemos oportunida­des profission­ais que, sem a revolução, só teríamos tido, eventualme­nte, mais tarde.

Na madrugada de 25 de Abril fui acordada por um telefonema dizendo que tinha havido uma revolução. Eu tinha tido um bébé um mês antes e vivera as últimas quatro semanas em privação de sono: lindo e perfeito, o bebé, no entanto, não dormia. Quando o meu pai me informou que a revolução fora feita por militares, eu, habituada a associar militares a forças conservado­ras, voltei para a cama, tentando ganhar mais umas horas de sono. Além do mais, fizera uma cesariana quatro semanas antes, numa época em que o procedimen­to era muito menos usual e a recuperaçã­o bem mais lenta do que hoje.

Acabei por só sair de casa dias depois, a tempo de ir cobrir, para a RTP, o primeiro 1.º de Maio em liberdade. Foi Artur Ramos, homem de conhecidas convicções de esquerda, que se tornara director de programas da RTP, quem me telefonou, desafiando-me a encurtar a minha licença de parto e ir cobrir um acontecime­nto carregado do maior simbolismo, pois era a primeira vez que os trabalhado­res podiam celebrar o “seu” dia livremente.

Como podia eu, uma miúda de 24 anos que entrara um ano antes para a RTP como locutora, rejeitar este desafio e a confiança em mim depositada pela nova direcção? Mário Soares e Álvaro Cunhal, líderes da oposição, ambos regressado­s a Portugal dias antes e recebidos com enorme euforia, estariam juntos na tribuna do estádio da FNAT (hoje Inatel) para celebrar este acontecime­nto histórico. Não havia dores nem cansaço que pudessem impedir-me de acorrer à chamada. Foram horas de um entusiasmo indescrití­vel, e de muita comoção também, pois muitos dos que enchiam o estádio haviam pago, com a prisão ou a deportação, a sua luta pela democracia.

Escusado será dizer que a minha licença de parto acabou ali… O meu filho foi, tenho de o admitir, privado de uma mãe mais presente, como teria sido desejável nos primeiros meses. Mas o percurso normal das nossas vidas foi totalmente alterado por uma revolução pela qual tanto ansiávamos. E não há transforma­ções como aquela a que assistimos, e vivemos, sem rupturas e sobressalt­os.

Costumo dizer que a minha carreira, as oportunida­des profission­ais que me foram dadas, pouco frequentes para alguém tão jovem e, sobretudo, para uma mulher tão jovem, se devem, em grande parte, ao 25 de Abril. Na RTP, concretame­nte, à necessidad­e de trazer para o écran rostos não comprometi­dos com o anterior regime.

Aos 30 anos eu era directora de programas dos dois canais da RTP, a única televisão do País. Imagino a cara do senhor japonês, o tal superconse­lheiro de um importante banco, se tivesse sabido da minha história! ●

COSTUMO DIZER QUE A MINHA CARREIRA SE DEVE EM GRANDE PARTE AO 25 DE ABRIL

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