SÁBADO

AS CANÇÕES QUE SÃO HERANÇAS

- ÂNGELA MARQUES

Como a Adriana Calcanhott­o, eu presto muita atenção ao que o meu irmão ouve. A atenção, no exato tamanho da gratidão, é tanta que a dada altura eu já nem sei quem dá música a quem. E foi por isso que, faz agora uma semana, quando ele me mostrou uma canção que qualquer dia faz meio século, eu pensei: há tanto tempo que não parava para ouvir uma canção do início ao fim sem distrações nem notificaçõ­es.

Era uma balada mas era também um tango, no sentido em que tinham sido precisos dois para a cantar e o resultado parecia uma dança, e, bem vistas as coisas, acabava a parecer um samba daqueles que pode envolver uma multidão num tumulto. Sem se anunciar, teve em mim o mesmo efeito que um perfume do verão de 2004: fez-me o check in automático para uma viagem ao passado. Nesse passado, ainda me lembro que, como todas as pessoas com 20 anos, eu fazia quase tudo a ouvir música: ela era banda sonora de todos romances, dramas e terrores da época, como se a minha vida fosse um musical francês, piegas e tudo.

Com ela, e com ou sem cigarros, eu nunca estava sozinha. Mas mais, era melhor: de phones, pela rua, eu fazia parte de um cortejo imaginário ao encontro de amigos que, naturalmen­te ou por decreto, ouviam

NAQUELA ALTURA ACREDITÁVA­MOS QUE A VIDA ERA UM REFRÃO. E NEM NOS IMPORTAVA QUE FOSSE REPETITIVO DESDE QUE DESSE PARA GRITAR

a mesma canção. Tem graça: naquela altura acreditáva­mos que a vida podia ser um refrão. E nem nos importava que fosse sempre o mesmo desde que fosse perfeito para gritar a plenos pulmões, com uma ponte sempre em crescendo, destinada a preparar-nos para um clímax qualquer.

Com aquela canção a levar-me o coração e a cabeça para outro tempo, pensei naqueles amigos, quase todos mais velhos que eu, que me fizeram ouvir canções, que me apresentar­am o passado quando eu só pensava no futuro – e que, com isso, me fizeram viver o presente como se ele me fosse fugir debaixo dos pés.

Com tanta memória, dei por mim praticamen­te ancestral, a sentir um dever praticamen­te divino: dar música a toda a gente mais nova que eu. É que eu já sei o que eles ainda não podem saber: que a mesma cantiga que é uma arma pode ser um escudo. ●

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