O INFERNO A ENTRAR-NOS PELA PORTA
Prepare-se: poucos filmes dos últimos anos têm tão explícito o selo “atual” quanto Guerra Civil. A mais recente longa-metragem de Alex Garland, realizador de Ex Machina, é uma utopia assustadora, porque tudo ali é verosímil.
NO SEU MAIS RECENTE livro, Pequeno-Almoço à Beira do Apocalipse, Wladimir Kaminer conta, com humor, as supostas queixas de uma vizinha sobre a possibilidade da guerra na Ucrânia se expandir para outros territórios e sobre não poderem entrar tanques na sua rua em Berlim, especialmente agora que foi arranjada para que bicicletas circulassem em total segurança. O que aí está subjacente é a ideia de que se deixou de conceber a proximidade da guerra, de se conseguir imaginar as capitais ocidentais a serem destruídas. No fundo, tanto tempo de paz fez da destruição de guerra e do instinto de sobrevivência território abstrato.
É provável que não tenha lido Kaminer, mas Alex Garland é um tipo que vê as coisas de forma diferente. É admirável como, no seu novo filme Guerra Civil, o cineasta e argumentista explora, através de detalhes, a ideia de não se conceber que algo pode acontecer “na nossa terra”, no Ocidente. Como quando as duas protagonistas Lee Smith (Kirsten Dunst) e Jessie (Cailee Spaeny), falam dos seus pais, que estão nas suas quintas, completamente indiferentes à guerra que está a acontecer no seu país. Porquê? Aqueles pais
Neste filme, sobre uma guerra civil que se instalou nos EUA, Garland mostra-nos o que acontece quando ficamos tão extremados
são os baby boomers, os que viveram os tempos de paz, a geração que melhor abraçou – e ensinou à seguinte – a ideia de que a história já estava feita.
Talvez por isso choque tanto aquele momento logo no início do filme em que se vê, em Nova Iorque, durante um motim, alguém a correr com uma bandeira e a explodir junto da polícia e de civis. Choca mas prepara-nos, porque aquele momento serve para instalar na cabeça do espectador a ideia de que algo semelhante pode acontecer junto de nós, que não é uma coisa que só é feita pelos “outros”, mas que também pode acontecer no nosso País, aqui e agora.
Se ainda não ficou claro, este é um filme sobre uma guerra civil nos Estados Unidos. A posição de Garland é apolítica (brilhantemente apolítica, diga-se), porque o que quer mostrar é a possibilidade. Não tanto um “para onde cami
nhamos”, mais um “desenganemo-nos se achamos que esses tempos de barbárie ficaram noutro século”. O que lhe parece interessar é o que acontece quando ficamos tão extremados. No fundo, é o que Garland nos mostra: dois extremos a lutar. Percebemos o que cada barricada significa, não exatamente o que cada lado pensa ou quer mudar.
Guerra Civil choca pela violência porque parece próxima. Apesar de nunca se saber o que motivou o conflito, sentimos que podemos estar a caminhar para ali. Choca ainda mais porque o filme conta a viagem de três jornalistas, Lee Smith, Joel (Wagner Moura) e Sammy (Stephen McKinley Henderson) e uma aspirante a fotojornalista de Nova Iorque até Washington, durante o que se sente serem os dias finais da guerra. Por serem repórteres, são também observadores do conflito, tal como nós, e isso cria uma dinâmica relacional interessante com aquilo a que se assiste.
O realizador mostra-nos este conflito através de olhos passivos, corpos não intervenientes que estão ali para reportar e documentar – o que torna Guerra Civil ainda mais desconcertante
Isso é particularmente impressionante na meia hora final do filme. Aí, fica claro: estamos a ver esta guerra através de olhos passivos, de corpos não intervenientes que estão ali para reportar, documentar. Isso torna Guerra Civil ainda mais desconcertante. É um filme oportunamente atual, tal como todos os outros de Alex Garland, ainda mais do que o subvalorizado Men (2022). Os tanques ainda podem andar nas nossas ruas, os helicópteros ainda podem cair em cima das nossas casas e existirão familiares numa quinta qualquer no Alentejo completamente alheados do que se está a passar. ●