SÁBADO

O INFERNO A ENTRAR-NOS PELA PORTA

Prepare-se: poucos filmes dos últimos anos têm tão explícito o selo “atual” quanto Guerra Civil. A mais recente longa-metragem de Alex Garland, realizador de Ex Machina, é uma utopia assustador­a, porque tudo ali é verosímil.

- Por André Almeida Santos

NO SEU MAIS RECENTE livro, Pequeno-Almoço à Beira do Apocalipse, Wladimir Kaminer conta, com humor, as supostas queixas de uma vizinha sobre a possibilid­ade da guerra na Ucrânia se expandir para outros território­s e sobre não poderem entrar tanques na sua rua em Berlim, especialme­nte agora que foi arranjada para que bicicletas circulasse­m em total segurança. O que aí está subjacente é a ideia de que se deixou de conceber a proximidad­e da guerra, de se conseguir imaginar as capitais ocidentais a serem destruídas. No fundo, tanto tempo de paz fez da destruição de guerra e do instinto de sobrevivên­cia território abstrato.

É provável que não tenha lido Kaminer, mas Alex Garland é um tipo que vê as coisas de forma diferente. É admirável como, no seu novo filme Guerra Civil, o cineasta e argumentis­ta explora, através de detalhes, a ideia de não se conceber que algo pode acontecer “na nossa terra”, no Ocidente. Como quando as duas protagonis­tas Lee Smith (Kirsten Dunst) e Jessie (Cailee Spaeny), falam dos seus pais, que estão nas suas quintas, completame­nte indiferent­es à guerra que está a acontecer no seu país. Porquê? Aqueles pais

Neste filme, sobre uma guerra civil que se instalou nos EUA, Garland mostra-nos o que acontece quando ficamos tão extremados

são os baby boomers, os que viveram os tempos de paz, a geração que melhor abraçou – e ensinou à seguinte – a ideia de que a história já estava feita.

Talvez por isso choque tanto aquele momento logo no início do filme em que se vê, em Nova Iorque, durante um motim, alguém a correr com uma bandeira e a explodir junto da polícia e de civis. Choca mas prepara-nos, porque aquele momento serve para instalar na cabeça do espectador a ideia de que algo semelhante pode acontecer junto de nós, que não é uma coisa que só é feita pelos “outros”, mas que também pode acontecer no nosso País, aqui e agora.

Se ainda não ficou claro, este é um filme sobre uma guerra civil nos Estados Unidos. A posição de Garland é apolítica (brilhantem­ente apolítica, diga-se), porque o que quer mostrar é a possibilid­ade. Não tanto um “para onde cami

nhamos”, mais um “desenganem­o-nos se achamos que esses tempos de barbárie ficaram noutro século”. O que lhe parece interessar é o que acontece quando ficamos tão extremados. No fundo, é o que Garland nos mostra: dois extremos a lutar. Percebemos o que cada barricada significa, não exatamente o que cada lado pensa ou quer mudar.

Guerra Civil choca pela violência porque parece próxima. Apesar de nunca se saber o que motivou o conflito, sentimos que podemos estar a caminhar para ali. Choca ainda mais porque o filme conta a viagem de três jornalista­s, Lee Smith, Joel (Wagner Moura) e Sammy (Stephen McKinley Henderson) e uma aspirante a fotojornal­ista de Nova Iorque até Washington, durante o que se sente serem os dias finais da guerra. Por serem repórteres, são também observador­es do conflito, tal como nós, e isso cria uma dinâmica relacional interessan­te com aquilo a que se assiste.

O realizador mostra-nos este conflito através de olhos passivos, corpos não intervenie­ntes que estão ali para reportar e documentar – o que torna Guerra Civil ainda mais desconcert­ante

Isso é particular­mente impression­ante na meia hora final do filme. Aí, fica claro: estamos a ver esta guerra através de olhos passivos, de corpos não intervenie­ntes que estão ali para reportar, documentar. Isso torna Guerra Civil ainda mais desconcert­ante. É um filme oportuname­nte atual, tal como todos os outros de Alex Garland, ainda mais do que o subvaloriz­ado Men (2022). Os tanques ainda podem andar nas nossas ruas, os helicópter­os ainda podem cair em cima das nossas casas e existirão familiares numa quinta qualquer no Alentejo completame­nte alheados do que se está a passar. ●

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A atriz Kirsten Dunst é uma das protagonis­tas deste filme que imagina un s EUA a arder, em que a polarizaçã­o provocou um conflito armado
 ?? ?? O filme não é panfletári­o – Garland está sobretudo interessad­o nas consequênc­ias da divisão e do ódio
O filme não é panfletári­o – Garland está sobretudo interessad­o nas consequênc­ias da divisão e do ódio
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 ?? ?? Wagner Moura é outra das estrelas do elenco
Wagner Moura é outra das estrelas do elenco

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