QUANTOS LUTOS CABEM NA NOSSA HISTÓRIA?
As Pequenas Chances é o primeiro romance publicado em Portugal por Natalia Timerman, autora brasileira que parte da morte do pai para falar de tantas outras mortes concretas e abstratas que só podem ser sanadas se lhe prestarmos o devido luto.
O LIVRO começa morrendo, no lugar do nunca mais. Natalia Timerman não nos oferece nenhuma história anterior à morte, não nos dá nem sequer um nome ou uma característica física que nos permita conhecer a personagem que, estando no centro da narrativa, já não está lá. Apenas sabemos que a morte que relata é a do seu pai e isso deita-nos imediatamente por terra. “Como é ser filha de alguém que já não está?”
Atirados sem preparação para o luto, para um luto de pai que conhecemos ou, em princípio, conheceremos inevitavelmente, somos obrigados a rendermo-nos à evidência da morte e à evidente impreparação que temos diante dela. Porém, ao longo da narrativa, vamos percebendo nas considerações de Natalia Timerman uma vontade de viver tão inevitável quanto a própria morte, expressa numa busca de entendimento pessoal, familiar, humanístico e religioso que, em última instância, desemboca numa perceção genológica e histórica do papel da mulher. A mulher que é mãe e filha, que, parindo, se presta a partir de si mesma para renascer noutro lugar físico e emocional. Morrer, como escreve Timerman, é “nascer ao contrário”.
A escrita é feita na primeira pessoa, ancorando-se em desabafos e memórias pessoais, mas também em memórias que a autora pediu de empréstimo a outras vozes, “como se as memórias alheias pudessem preencher lacunas, como se pudessem ser transplantadas, lidas, vividas, respiradas”, escreve no Epílogo. Pouco importa perceber o que é autobiográfico ou ficcional. A narrativa de Natalia Timerman é a nossa narrativa.
Dividido em três partes – a do luto de filha, a da descrição dos últimos dias de vida do pai e a da aproximação de Natalia às suas raízes judaicas e da sua vivência enquanto mãe –, o livro é também um exercício de empatia com o outro e com o nosso passado, tão ou mais atual dado o contexto geopolítico presente. Convoca-nos a abandonar uma retórica divisionista para entendermos os contextos que nos trouxeram até aqui, sem que com isso queira manifestar algum tipo de vantagem moral sobre o leitor ou esvaziá-lo de crítica.
As Pequenas Chances, o primeiro romance publicado em Portugal pela autora de São Paulo, é, neste sentido, uma obra tocante e com nervo, sem medo de expor a dor e o desumano e de falar abertamente dos lutos íntimos e coletivos. É uma espécie de terapia de grupo escrita em tom confidencial que, no fim, nos aproxima um pouco mais de nós mesmos e dos valores fundamentais da humanidade, se estivermos abertos a aceitar as nossas limitações. ●
Espécie de terapia de grupo escrita em tom confessional, esta é uma obra tocante e com nervo, sem medo de expor a dor e de falar abertamente dos lutos íntimos e coletivos