AO IMPOSSÍVEL E MAIS ALÉM
O regresso de Tiago Rodrigues ao País traz-nos uma peça em que a face negra da ajuda humanitária está em primeiro plano — o espelho de uma realidade que ignoramos todos os dias.
trava quando se avistam sobreviventes de um ataque, que enterram conterrâneos à beira da estrada. Uma guerra entre duas fações, cada uma no seu monte, é interrompida por instantes para que se possa resgatar um ferido, menor de idade, que está a sangrar até à morte. Uma pessoa com uma bolsa de sangue tem de decidir se salva uma criança de 8 anos ou duas de 3 anos. Que realidades são estas, vividas todos os dias por milhões de pessoas sem rosto ou nome?
À questão, o encenador e dramaturgo Tiago Rodrigues responde com mais algumas na sua nova peça, que chega esta semana a Portugal depois de quase dois anos na estrada. Na Medida do Impossível refere-se tanto aos esforços dos trabalhadores em ajuda humanitária para apoiar os necessitados, quanto ao lado do mundo assolado pela guerra, fome, doença e instabilidade política – o “impossível”, que contrasta com o nosso “possível”.
Partindo de entrevistas com cerca de 30 trabalhadores destas instituições – “que podiam durar duas horas ou dois dias”, diz à SÁBADO o diretor do Festival d’Avignon –, Tiago Rodrigues empreendeu uma mistura entre “um trabalho muito parecido com jornalismo”, de corte e colagem de histórias reais, e escrita criativa e livre. Um método para trazer para o palco aspetos da ajuda humanitária a que raramente temos acesso, desde logo o “preço psicológico e emocio
A experiência da ajuda humanitária sobe a palco em Na Medida do Impossível, um retrato do lado menos visível do século XXI
nal que pagam estes trabalhadores”, que têm a “lucidez de perceberem que não vão mudar o mundo” – são “um guarda-chuva perante um tsunâmi”.
O facto de não querer fazer um “teatro-documentário”, fugindo a uma perspetiva “académica, científica ou enciclopédica”, levou Tiago Rodrigues a perceber rapidamente que esta não seria uma peça sobre os trabalhadores em ajuda humanitária, ou mesmo sobre as suas histórias, mas sim sobre “o modo como encaram e relatam as suas experiências” – o “momento da poesia”, em que refletem sobre as emoções fortes que viveram.
Daí que seja uma peça menos encenada do que contada, que “faz apelo constante à imaginação do público” e em que “as ferramentas mais importantes são a narrativa e a evocação”: os quatro atores, a portuguesa Beatriz Brás e os suíços Adrien Barazzone, Baptiste Coustenoble e Natacha Koutchoumov, relatam os acontecimentos ao som das batidas soturnas do baterista Gabriel Ferrandini – a forma, numa peça já de si incrivelmente pesada, de transmitir histórias “indizíveis” que ouviram. ●