Como não ser um urso
AGORA QUE PENSO NISSO, somos um País de ursos. Cinquenta anos depois do 25 de Abril, não temos a vara sobre o lombo e podemos mexer-nos em liberdade. Mas há momentos em que nos levantamos sobre as duas patas e, para espanto geral do respeitável público, desatamos a dançar.
Peço a metáfora de empréstimo ao grande jornalista polaco Witold Szablowski e ao seu Dancing Bears: True Stories about Longing for the Old Days. No livro, Szablowski revisitava o Leste da Europa, depois da libertação da pata moscovita, para contar a história dos ursos dançantes. Nos bons velhos tempos do comunismo, os ursos eram treinados para números de circo. Como? Através de uma mistura de chicote e álcool. Se dançassem como deviam, tinham direito à sua dose. Se não o fizessem, tinham direito à violência do tratador.
Tudo mudou com a entrada destes países na União Europeia. A legislação comunitária determinou que os ursos fossem libertados – ou, melhor dizendo, recolhidos em reservas naturais para viverem em paz. Mas os bichos, por privação ou inadequação, ainda espantavam os visitantes com danças a despropósito. Viver em liberdade, ou em relativa liberdade, não era pêra doce. Nunca é.
As discussões sobre o 25 de Abril, sobretudo nesta data redonda, despertam sempre o urso que há em nós. Há aqueles que dançam pelo Estado Novo, mitificando a ditadura e as suas virtudes ilusórias. Há os que dançam pelo PREC, quando a “revolução” que desejavam para o País foi “atraiçoada” pelos desvios “burgueses” da democracia liberal. E há também os que pensam que o 25 de Abril é um cravo frágil, pronto a ser destruído por um iminente regresso ao passado. Rapidamente e em força, como dizia o outro.
Ignoro estes ursos, felizmente poucos, cada vez mais poucos. Mas não ignoro uma vasta maioria que, ao contrário dos mais primitivos, comete um erro maior: dançar por um 25 de Abril que “não se cumpriu”, projectando na data o que a data não é. Falam bem, falam muito, falam de tudo. Só não falam do 25 de Abril.
“Liberdade é liberdade”, escreveu um dia Isaiah Berlin, “não é igualdade ou equidade ou justiça ou cultura, ou felicidade humana ou uma consciência tranquila”. Se aceitamos que os valores são múltiplos, conflituosos e nem sempre compatíveis entre si na sua expressão máxima, convém não confundir as coisas, sob pena de os destruirmos. A liberdade vale em si mesma e deve ser celebrada por si mesma.
Confundir o 25 de Abril com a economia que não temos, a educação que não atingimos, a pobreza e a desigualdade que persistem, a justiça que tarda, a classe política que escolhemos, o refinamento cultural que permanece distante e os mil vícios que permanecem não é um problema do 25 de Abril. Quando muito, é um problema dos seus filhos e herdeiros, que fizeram com o 25 de Abril o que só a liberdade permite. E fizeram bastante, apesar de tudo, embora nunca o suficiente.
Tantos sábios, tanta gente sábia a perorar sobre a efeméride – e o mais sábio dos sábios continua a ser aquele rapaz de 29 anos que, na madrugada do golpe militar, apresentou uma nova tipologia de regimes políticos a que a Ciência Política não prestou ainda a devida atenção. “Meus senhores”, anunciou ele aos seus homens antes de avançar de Santarém para Lisboa, “há diversas modalidades de Estado: os sociais, os corporativos e o estado a que chegámos. Ora, esta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos.” Isto, que para muitos sabe a pouco, para mim é tudo.
CRAVOS VERMELHOS. No fundo, fazem lembrar os cravos verdes que apareceram em Londres em finais do século XIX para espanto dos nativos. O que significavam? E, sobretudo, como se tornavam verdes?
O mistério foi rapidamente esclarecido: Oscar Wilde, um revolucionário à sua maneira, começou a usá-los como símbolo de ruptura e possibilidade. Lançou a moda. E os cravos tornavam-se verdes com algumas gotas de arsénio.
Brindo ao 25 de Abril como ruptura e possibilidade. E dispenso o veneno que faz os ursos dançar. ●