Não é só o MP que deve ser independente
Tente-se lá explicar isto ao cidadão comum. Um processo que visa um primeiro-ministro é aberto e remetido para ser investigado pelo Ministério Público (MP) junto do Supremo Tribunal de Justiça. A legislação não dita isto, mas justificam-nos que há deferências que cabem num foro especial (in)formal devido a certas figuras de Estado. A investigação (?) decorre durante quase seis meses e, como entretanto o processo foi tornado público pela procuradora-geral da República, o primeiro-ministro (numa atitude séria) apresenta a demissão, o Governo cai por decisão do Presidente da República e o primeiro-ministro mantém-se em gestão até sair de cena devido a novas eleições legislativas.
Até pode ser relevante para alguns, mas para aqui não interessa que hoje o País tenha um novo Governo assente noutras cores políticas que não as do anterior executivo que governava com maioria absoluta ditada pelo voto popular. O que interessa é que mal cai de vez o anterior primeiro-ministro – e sem que ninguém o tivesse chamado para dar qualquer explicação como testemunha ou arguido no caso –, o processo sai do STJ novamente por vontade do MP e regressa ao Departamento Central de Investigação e Ação Penal.
Nesta altura, a Operação Influencer, de onde vieram as suspeitas para investigar António Costa, já não é um processo, mas o caso foi partido em três inquéritos. A investigação também já não tem três procuradores, mas nove e uma equipa mista com elementos da PJ e da Autoridade Tributária que estão a tentar salvar um caso, em que uma parte foi arrasada por um juiz de instrução e por um coletivo da Relação de Lisboa que analisou medidas de coação e indícios de crimes que (não) constam naquele que era considerado pelo DCIAP como o processo mais promissor. Já o (ex)primeiro-ministro fica a ser o quarto processo e passa a ser encarado, dizem-nos de novo, como apenas mais um. Pelos vistos perdeu a deferência do (in)formal foro especial, porque deixou de ser primeiro-ministro, ainda que as suspeitas incidam sobre atos que praticou como primeiro-ministro há apenas uns meses, tendo-se demitido porque a PGR anunciou que era suspeito. Confuso?
Convenhamos que o insólito caso merece ser estudado nas faculdades de Direito, mas também discutido na esfera pública e legislativa, porque pode haver quem julgue que, com este inusitado cenário, já não é a independência da justiça que está em causa (como amiúde se reclama, e com razão), mas a independência do poder político votado pelos portugueses. Por isso, trazer de novo o processo para o DCIAP, pode contribuir ainda mais para esta visão que não preserva o prestígio da justiça, e do MP em particular. Já agora, não seria de bom tom que a instituição que investiga este caso deixasse de falar pela boca de sindicalistas como Paulo Lorna e passasse a ser a sua principal responsável a assumir em público o que deve ser assumido e explicado? Porque o que passa para a opinião pública é que a mais alta responsável pela PGR parece viver numa estranha redoma quando diz que a investigação vai “durar o tempo que durar” e que não se sente “responsável por coisa nenhuma”. Nem sequer é o que diz, mas o que só diz e o tom que usa.
A questão do (in)formal foro especial não deveria ser vista como uma deferência a A ou B, deveria ser apenas uma forma de analisar com muita atenção, logo no início da investigação, o comportamento criminalmente suspeito de A ou B em certo tipo de funções. E sabendo que o segredo e o tempo são fundamentais para preservar as escolhas populares até prova em contrário. Não se trata de uma benesse para os próprios, mas destina-se a elevar o escrutínio e evitar intervenções espúrias, incompetentes ou manipuladoras. Considerar que o MP pode fazer deferências umas vezes e noutras não, sem ter em conta o momento dos atos praticados, é usar o direito como conveniência pessoal.
Sócrates e o espelho da Justiça
O facto de José Sócrates querer evitar a todo o custo qualquer julgamento sobre os atos que lhe são imputados diz muito sobre o homem que é. Mas era bom que o ónus da culpabilidade pública, de que já ninguém o livra para sempre, não fosse o destino final de um caso que põe em causa a ideia de que todos somos iguais perante a Justiça. Sentar Sócrates num banco dos réus é um imperativo de higiene social. ●