Ministério Público em abril (afinações de percurso)
COMPLETA-SE EM ABRIL meio século desde a implantação da democracia e celebram-se em setembro 46 anos de publicação da primeira Lei Orgânica do Ministério Público. Foi ela que modelou este órgão à luz das exigências do Estado de direito acolhidas no novo texto constitucional, ainda que só em 1992 se tivesse alcançado plena autonomia face ao poder político. O Código de Processo Penal, que cometeu ao Ministério Público a responsabilidade pela investigação criminal, foi publicado fez em fevereiro passado 37 anos. É, por isso, boa altura para refletir sobre a necessidade de afinações, depois de tanto caminho percorrido.
Aqui vão algumas propostas à consideração não apenas de quem tem o encargo de legislar e de quem tem a responsabilidade de gerir esta magistratura, mas também dos que lhe dão vida pelo seu labor quotidiano.
1 Importará recentrar e revitalizar a matriz do Ministério Público como magistratura, supra partes, investigando à charge et à décharge, a quem apenas interessa a realização da Justiça através da Verdade. Com a assunção dessa atitude crescerá a credibilidade da sua palavra e da sua ação no processo, fazendo jus ao lugar que ocupa na teia judiciária.
Uma das vias para esse objetivo passará por acentuar o seu papel de dirigente da investigação criminal deixando, em regra, aos órgãos de polícia criminal a execução das diligências a ela inerentes, com as necessárias margens de autonomia técnica e tática. Isto sem pôr em causa o sistemático, rigoroso e acrescido controlo do inquérito pelo magistrado titular, com vista à realização da estratégia prévia, sucessiva e persistentemente por ele definida, segundo as regras do processo e respeito pelos direitos, liberdades e garantias individuais.
Ao evitar imiscuir-se desnecessariamente no terreno da execução prática das diligências de investigação, mas sempre sem perder de vista a legalidade da sua execução e a racionalidade e proporcionalidade dos meios nela empregues, o MP ganhará maior distanciamento e objetividade na análise que derradeiramente fará da valia da matéria probatória alcançada e da sua força para superar em sede judicial a barreira de qualquer dúvida razoável. Tal distanciamento melhor propiciará também a adoção de medidas de coação mais calibradas e no momento mais adequado, isto é, quando se considerem já obtidos indícios suficientes da factualidade criminosa, arredando-se a ideia de que se prende para investigar.
Essa atitude de prudente distanciamento poderá, contudo, sofrer restrições ditadas pelo especialíssimo melindre de algum tema investigatório, pela previsivelmente intensa gravidade das suas repercussões, ou por dificuldades circunstanciais dos órgãos de polícia criminal.
2 Importará preservar o elevado nível de autonomia externa de que o MP atualmente goza. O Conselho Superior assegura preciosos equilíbrios e a sua composição satisfaz plenamente as Recomendações do Conselho da Europa sobre a matéria.
Dos três blocos componentes (político, representativo dos magistrados e representativo da hierarquia), o dos procuradores-gerais regionais assume especial relevo institucional. São eles o fiel da balança, com conhecimento apurado do funcionamento da instituição e já sem o viés corporativo, vocacionados para fazer cumprir as diretivas do procurador-geral da República de forma adequada à concreta realidade da sua circunscrição e para avaliar e reportar superiormente os resultados e as consequências da sua aplicação.
Tão nuclear é o seu papel que mereceria até ser criado um colégio de procuradores-gerais regionais e de procuradores-gerais adjuntos coordenadores nos Supremos Tribunais, presidido pelo PGR, destinado a analisar regularmente questões de natureza operacional, de articulação de iniciativas processuais e de homogeneização de interpretações legais e procedimentos nas diversas regiões, instâncias e jurisdições.
3 Importará assegurar o efetivo funcionamento da cadeia hierárquica em matéria penal, possibilitando-lhe sempre o conhecimento das questões relevantes que possam merecer a sua intervenção e efetiva responsabilização. Isto sem prejuízo da auto
nomia técnico-científica de cada magistrado e das consequentes possibilidades de objeção de consciência, bem como do cumprimento de formalidades de registo de ordens e orientações provindas da hierarquia.
Será essa a melhor forma de aperfeiçoar a ação do MP, propiciando uma intervenção em equipa e superando o que vulgarmente se designa por “primado dos inexperientes”.
Foi no pressuposto desse acompanhamento hierárquico das diligências processuais, em ordem à sua melhor adequação à realidade de cada inquérito, que foi cometida ao MP a responsabilidade pela investigação criminal.
4 Importará especialmente que a hierarquia possa controlar e tutelar a execução das investigações que, por qualquer motivo, possam previsivelmente vir a ter relevantes repercussões públicas, exteriores à dinâmica e objetivo do específico exercício da ação penal, não se eximindo a intervir nas decisões mais melindrosas, que reclamem uma ponderação que a maior experiência profissional e de vida em princípio dará.
Há, por outro lado, que garantir elevado nível de formação e experiência dos magistrados que intervenham nesses processos, devendo ser esse o critério essencial da sua colocação nos departamentos especializados.
As decisões fulcrais de acusação deverão mesmo, nesses casos, ser tomadas mediante prévia consulta da hierarquia e, se conveniente, dos magistrados que intervenham nas fases de instrução e julgamento, que poderão alertar para especiais exigências de prova, antecipando contraditórios de elevada competência.
Por tal razão, também a realização de diligências que impliquem maior compressão da liberdade deve merecer consulta prévia e definição partilhada ao nível hierárquico adequado. Essa convocação de saberes e experiências e o apurado estudo das causas viabilizará o alcance de decisões mais esclarecidas em prazos razoáveis.
5 Num outro plano, importará fazer compreender a natureza dos atos políticos, de modo a que se possam interpretar criteriosamente os limites da sua discricionariedade, designadamente quando tais atos sejam unicamente pré-ordenados à realização do interesse coletivo e não também à obtenção de contrapartidas ilegítimas. Tendo sempre presente que a intervenção do direito penal deverá ser de ultima ratio e que é, sobretudo, prejudicial ao equilíbrio de poderes constitucionais a instalação da ideia de que se faz lawfare ou justiceirismo. Há, em suma, que saber destrinçar interpretações robustas de hermenêuticas temerárias e distinguir persistência de encarniçamento investigatório que atente contra a obrigação estatutária de estrita objetividade na análise das provas e no exercício da ação penal.
6 Importará evitar a duração excessiva das investigações, sobretudo depois de ter sido publicitada a identidade dos suspeitos ou arguidos. A não limitação, nestes casos, do tempo de duração do inquérito, sobretudo quando cumulada com sobre-exposição mediática, poderá originar insuportável compressão dos direitos de cidadania e poderá reclamar a fixação de prazos perentórios.
7 Muito beneficiará o Ministério Público com a aceitação e compreensão de críticas, internas ou externas, que possam ser formuladas em relação à sua atuação. Ainda que o vocábulo seja menos redondo e mais incisivo, a crítica, venha ela de onde vier, quando feita com argumentos plausíveis e reta intenção, poderá ser instrumento de alerta e impulsionar mecanismos de autoanálise e correção inestimáveis.
Aqui ficam, pois, algumas propostas à consideração de quem tem responsabilidades no sistema de justiça e de quem, nos órgãos do poder político, tem a obrigação de legislar para tornar a ação da Justiça mais eficiente e, assim, pronta e justa. Sem preocupação de exaustividade, mas com o melhor dos propósitos e na expectativa de um saudável entendimento, celebrando Abril. ●