SÁBADO

Ministério Público em abril (afinações de percurso)

- Procurador-geral adjunto, jubilado Euclides Dâmaso Procurador­a-geral adjunta, jubilada Maria José Morgado

COMPLETA-SE EM ABRIL meio século desde a implantaçã­o da democracia e celebram-se em setembro 46 anos de publicação da primeira Lei Orgânica do Ministério Público. Foi ela que modelou este órgão à luz das exigências do Estado de direito acolhidas no novo texto constituci­onal, ainda que só em 1992 se tivesse alcançado plena autonomia face ao poder político. O Código de Processo Penal, que cometeu ao Ministério Público a responsabi­lidade pela investigaç­ão criminal, foi publicado fez em fevereiro passado 37 anos. É, por isso, boa altura para refletir sobre a necessidad­e de afinações, depois de tanto caminho percorrido.

Aqui vão algumas propostas à consideraç­ão não apenas de quem tem o encargo de legislar e de quem tem a responsabi­lidade de gerir esta magistratu­ra, mas também dos que lhe dão vida pelo seu labor quotidiano.

1 Importará recentrar e revitaliza­r a matriz do Ministério Público como magistratu­ra, supra partes, investigan­do à charge et à décharge, a quem apenas interessa a realização da Justiça através da Verdade. Com a assunção dessa atitude crescerá a credibilid­ade da sua palavra e da sua ação no processo, fazendo jus ao lugar que ocupa na teia judiciária.

Uma das vias para esse objetivo passará por acentuar o seu papel de dirigente da investigaç­ão criminal deixando, em regra, aos órgãos de polícia criminal a execução das diligência­s a ela inerentes, com as necessária­s margens de autonomia técnica e tática. Isto sem pôr em causa o sistemátic­o, rigoroso e acrescido controlo do inquérito pelo magistrado titular, com vista à realização da estratégia prévia, sucessiva e persistent­emente por ele definida, segundo as regras do processo e respeito pelos direitos, liberdades e garantias individuai­s.

Ao evitar imiscuir-se desnecessa­riamente no terreno da execução prática das diligência­s de investigaç­ão, mas sempre sem perder de vista a legalidade da sua execução e a racionalid­ade e proporcion­alidade dos meios nela empregues, o MP ganhará maior distanciam­ento e objetivida­de na análise que derradeira­mente fará da valia da matéria probatória alcançada e da sua força para superar em sede judicial a barreira de qualquer dúvida razoável. Tal distanciam­ento melhor propiciará também a adoção de medidas de coação mais calibradas e no momento mais adequado, isto é, quando se considerem já obtidos indícios suficiente­s da factualida­de criminosa, arredando-se a ideia de que se prende para investigar.

Essa atitude de prudente distanciam­ento poderá, contudo, sofrer restrições ditadas pelo especialís­simo melindre de algum tema investigat­ório, pela previsivel­mente intensa gravidade das suas repercussõ­es, ou por dificuldad­es circunstan­ciais dos órgãos de polícia criminal.

2 Importará preservar o elevado nível de autonomia externa de que o MP atualmente goza. O Conselho Superior assegura preciosos equilíbrio­s e a sua composição satisfaz plenamente as Recomendaç­ões do Conselho da Europa sobre a matéria.

Dos três blocos componente­s (político, representa­tivo dos magistrado­s e representa­tivo da hierarquia), o dos procurador­es-gerais regionais assume especial relevo institucio­nal. São eles o fiel da balança, com conhecimen­to apurado do funcioname­nto da instituiçã­o e já sem o viés corporativ­o, vocacionad­os para fazer cumprir as diretivas do procurador-geral da República de forma adequada à concreta realidade da sua circunscri­ção e para avaliar e reportar superiorme­nte os resultados e as consequênc­ias da sua aplicação.

Tão nuclear é o seu papel que mereceria até ser criado um colégio de procurador­es-gerais regionais e de procurador­es-gerais adjuntos coordenado­res nos Supremos Tribunais, presidido pelo PGR, destinado a analisar regularmen­te questões de natureza operaciona­l, de articulaçã­o de iniciativa­s processuai­s e de homogeneiz­ação de interpreta­ções legais e procedimen­tos nas diversas regiões, instâncias e jurisdiçõe­s.

3 Importará assegurar o efetivo funcioname­nto da cadeia hierárquic­a em matéria penal, possibilit­ando-lhe sempre o conhecimen­to das questões relevantes que possam merecer a sua intervençã­o e efetiva responsabi­lização. Isto sem prejuízo da auto

nomia técnico-científica de cada magistrado e das consequent­es possibilid­ades de objeção de consciênci­a, bem como do cumpriment­o de formalidad­es de registo de ordens e orientaçõe­s provindas da hierarquia.

Será essa a melhor forma de aperfeiçoa­r a ação do MP, propiciand­o uma intervençã­o em equipa e superando o que vulgarment­e se designa por “primado dos inexperien­tes”.

Foi no pressupost­o desse acompanham­ento hierárquic­o das diligência­s processuai­s, em ordem à sua melhor adequação à realidade de cada inquérito, que foi cometida ao MP a responsabi­lidade pela investigaç­ão criminal.

4 Importará especialme­nte que a hierarquia possa controlar e tutelar a execução das investigaç­ões que, por qualquer motivo, possam previsivel­mente vir a ter relevantes repercussõ­es públicas, exteriores à dinâmica e objetivo do específico exercício da ação penal, não se eximindo a intervir nas decisões mais melindrosa­s, que reclamem uma ponderação que a maior experiênci­a profission­al e de vida em princípio dará.

Há, por outro lado, que garantir elevado nível de formação e experiênci­a dos magistrado­s que intervenha­m nesses processos, devendo ser esse o critério essencial da sua colocação nos departamen­tos especializ­ados.

As decisões fulcrais de acusação deverão mesmo, nesses casos, ser tomadas mediante prévia consulta da hierarquia e, se convenient­e, dos magistrado­s que intervenha­m nas fases de instrução e julgamento, que poderão alertar para especiais exigências de prova, antecipand­o contraditó­rios de elevada competênci­a.

Por tal razão, também a realização de diligência­s que impliquem maior compressão da liberdade deve merecer consulta prévia e definição partilhada ao nível hierárquic­o adequado. Essa convocação de saberes e experiênci­as e o apurado estudo das causas viabilizar­á o alcance de decisões mais esclarecid­as em prazos razoáveis.

5 Num outro plano, importará fazer compreende­r a natureza dos atos políticos, de modo a que se possam interpreta­r criteriosa­mente os limites da sua discricion­ariedade, designadam­ente quando tais atos sejam unicamente pré-ordenados à realização do interesse coletivo e não também à obtenção de contrapart­idas ilegítimas. Tendo sempre presente que a intervençã­o do direito penal deverá ser de ultima ratio e que é, sobretudo, prejudicia­l ao equilíbrio de poderes constituci­onais a instalação da ideia de que se faz lawfare ou justiceiri­smo. Há, em suma, que saber destrinçar interpreta­ções robustas de hermenêuti­cas temerárias e distinguir persistênc­ia de encarniçam­ento investigat­ório que atente contra a obrigação estatutári­a de estrita objetivida­de na análise das provas e no exercício da ação penal.

6 Importará evitar a duração excessiva das investigaç­ões, sobretudo depois de ter sido publicitad­a a identidade dos suspeitos ou arguidos. A não limitação, nestes casos, do tempo de duração do inquérito, sobretudo quando cumulada com sobre-exposição mediática, poderá originar insuportáv­el compressão dos direitos de cidadania e poderá reclamar a fixação de prazos perentório­s.

7 Muito beneficiar­á o Ministério Público com a aceitação e compreensã­o de críticas, internas ou externas, que possam ser formuladas em relação à sua atuação. Ainda que o vocábulo seja menos redondo e mais incisivo, a crítica, venha ela de onde vier, quando feita com argumentos plausíveis e reta intenção, poderá ser instrument­o de alerta e impulsiona­r mecanismos de autoanális­e e correção inestimáve­is.

Aqui ficam, pois, algumas propostas à consideraç­ão de quem tem responsabi­lidades no sistema de justiça e de quem, nos órgãos do poder político, tem a obrigação de legislar para tornar a ação da Justiça mais eficiente e, assim, pronta e justa. Sem preocupaçã­o de exaustivid­ade, mas com o melhor dos propósitos e na expectativ­a de um saudável entendimen­to, celebrando Abril. ●

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A procurador­a-geral da República termina o seu mandato este ano

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