CADERNO DE SIGNIFICADOS
Lucília Gago foi escolhida pelo PS, através de um conjunto de contactos feitos, no essencial, pela então ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, e pelo próprio António Costa. Muita gente rejubilou quando o nome de Lucília Gago emergiu
A demissão de Lucília Gago
Aosquepedem a demissão da procuradora-geral da República, por entre sugestões de demolição do próprio Ministério Público (MP), há que recordar meia dúzia de coisas. Concordando em absoluto que Lucília Gago deveria falar sobre a situação que o MP atravessa e que a perceção pública sobre a instituição, centrada em meia dúzia de casos, não é a melhor, convinha travar alguns oportunismos e narrativas parasitárias que campeiam por aí.
Lucília Gago foi escolhida pelo PS, através de um conjunto de contactos feitos, no essencial, pela então ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, e pelo próprio António Costa. Muita gente rejubilou quando o nome de Lucília Gago emergiu. Não era segredo para ninguém que o governo socialista da geringonça queria um perfil baixo no cargo, depois do consulado de Joana Marques Vidal.
A personalidade forte e livre de Joana Marques Vidal, escolhida, recorde-se, por Paula Teixeira da Cruz e Passos Coelho, materializando um poder verdadeiramente autónomo na liderança do Ministério Público, não agradava a nenhum dos inquilinos dos outros palácios. Não agradava em São Bento nem no Palácio de Belém, diga-se, de onde partiu o engano de um segundo mandado que nunca esteve na vontade de nenhuma das respetivas senhorias.
Marques Vidal tinha uma liderança suportada na sua própria estratégia, de diálogo permanente com toda a estrutura do Ministério Público. Não havia semana que não saísse do palácio na rua da Escola Politécnica e não fosse a reuniões de visita e trabalho nas comarcas. Mas também numa ideia de Ministério Público que era, sem tirar nem pôr, a de Cunha Rodrigues, mentor de Joana Marques Vidal.
A sua liderança, dialogante e exigente, tinha então um enorme pilar no diretor do DCIAP, o magistrado Amadeu Guerra. Oriundo dos tribunais administrativos, Amadeu Guerra estabeleceu algumas normas elementares e de bom senso na reorganização do DCIAP, debilitado pela barafunda deixada por Cândida Almeida e Pinto Monteiro, que produziram logo resultados. Impôs reuniões periódicas de avaliação das investigações em curso, os seus prazos e diligências efetuadas ou a efetuar. Nomeou magistrados para acompanharem os titulares dos processos, com a missão de apoiarem os colegas e promoveu padrões sólidos de eficácia.
A questão da hierarquia – da falta dela – nunca se colocou nessa altura. Como nunca se colocou com Cunha Rodrigues. Joana Marques Vidal e Amadeu Guerra acompanhavam, decidiam os temas mais importantes, comunicavam para dentro e para fora, como se viu na Operação Marquês ou no Universo BES.
Essefoiumciclo em que se respondia, com eficácia, a um velho enigma da vida pública. Temos, como qualquer outro país europeu, níveis de corrupção consideráveis, que se veem nos casos investigados, incluindo o de um ex-primeiro-ministro, mas este permanece um crime invisível, como se nunca tivesse existido. O número de condenados, presos ou não, é inexistente.
Portanto, sim, Lucília Gago protagoniza um dos piores momentos da história do MP, a seguir a Pinto Monteiro, o juiz conselheiro escolhido por Dias Loureiro e Proença de Carvalho, que ia endireitar a casa, mas a culpa não é só dela. É também de quem achou que estava a escolher uma aliada para entorpecer a instituição, depois do músculo excessivo de Joana. E sim, em alguns caso, como o da Operação Influencer, o MP nunca deveria ter ficado sozinho a investigar. Uma liderança forte exigiria para baixo que o processo fosse entregue à Polícia Judiciária. Não teriam sido cometidos alguns erros primários, como se depreendeu logo da simples leitura do despacho indiciário. Mas só por oportunismo se pode tomar a nuvem por Juno. Penso que António Costa não o faz e não merece que se ponham em bicos de pés a querer fazer por ele. Só por oportunismo se pode querer destruir uma importante instituição do Portugal democrático, servida por mais de 1500 magistrados que trabalham seriamente todos os dias. Só por serventia a amizades mais ou menos inconfessáveis pelo vasto conjunto de interesses que comportam. ●