SÁBADO

Portugal a fazer mais e melhor: a escola

O SISTEMA DE ENSINO PORTUGUÊS ENCONTRA-SE PELA PRIMEIRA VEZ EM ROTA DESCENDENT­E

- MIGUEL HERDADE Gestor do setor social

Talvez o maior motivo de orgulho coletivo da nossa democracia seja a Educação. Portugal ainda é, de longe, o país menos escolariza­do da Europa, mas está no bom caminho para finalmente deixar de o ser. Alargámos a escola a quase toda a gente, e fizemo-lo sem compromete­r a qualidade: pelo contrário, os alunos de hoje são muito melhores do que os da minha geração, e têm infinitame­nte melhores resultados do que os meus pais e avós. Um feito notável de todos.

No ano 2000, metade dos adultos portuguese­s ainda não tinha mais do que a 4.ª classe, mas a escolariza­ção dos mais novos continuou a fazer o seu caminho. Quando eu nasci, no início dos anos 90, cerca de metade das crianças e jovens não completava a escolarida­de além do ensino básico. Hoje, podemos dizer que somos um País onde a esmagadora maioria dos alunos conclui o ensino secundário.

O mais extraordin­ário é que o alargament­o da escola a todas as crianças não se fez à custa de diminuir a qualidade e do facilitism­o que tantos apregoam. Frases como “antigament­e é que era bom” e “eles agora não sabem nada” não têm adesão à realidade. Os resultados, sobretudo das primeiras duas décadas do século XXI, foram extraordin­ariamente positivos. Apesar do trágico descalabro dos últimos anos letivos, a maioria das crianças no início desta década ainda tinham resultados muito melhores do que há 20 anos. Aliás, esses alunos eram até melhores do que os muitos países europeus com que nos comparamos e que idolatramo­s.

Nem tudo são rosas, ou cravos, melhor dizendo. Nos últimos 20 anos o País falhou, de forma imperdoáve­l, na diminuição das desigualda­des na escola e no combate ao peso que a pobreza tem na nossa capacidade de ter boas notas.

Aliás, o sucesso do nosso sistema de ensino, e a convergênc­ia dos nossos alunos com o resto da Europa, não pode nunca ser visto como um dado adquirido, mas sim como uma coisa pela qual temos sempre de continuar a lutar.

Na década em que celebramos os 50 anos do 25 de Abril, o sistema de ensino português encontra-se pela primeira vez em rota descendent­e. A pandemia, e as políticas de educação recentes, geraram uma quebra drástica dos resultados dos alunos em todos os domínios e, pior, deixaram-nos com um sistema de ensino sem professore­s suficiente­s. O período 2020-2030 corre o risco de marcar a primeira geração que teve a acesso a uma escola pública (e privada) pior do que a dos seus pais.

Há muito para fazer e celebrar, mas é também importante não esquecer que a vida se constrói a olhar para frente: estamos agora à mesma distância de 1974 que de 2074, e está na altura de planear, inovar e pensar o futuro do País e que escolas queremos criar. ●

Acomissão que ia desmantela­r as regras ultraconse­rvadoras do casamento e da sucessão arrancara há pouco tempo quando o ministro da Justiça, Pinheiro Farinha, tentou uma alteração sem aviso prévio. “Nomeou uma pessoa, certamente por indicação ou pressão da Igreja Católica, que apareceu numa reunião”, conta Leonor Beleza, que integrou a comissão entre 1976 e 1977. A tentativa de influencia­r os trabalhos foi travada de imediato pela líder da comissão, Isabel Magalhães Colaço, a primeira mulher a doutorar-se em Direito em Portugal, em 1954. “A professora Magalhães Colaço entendeu que aquilo não seria adequado e essa pessoa desaparece­u da comissão, foi um episódio de um dia”, relembra Beleza.

Dois anos depois do 25 de Abril, a transição para uma sociedade democrátic­a e com igualdade de direitos passava pela revisão profunda das leis do Estado Novo sobre a família. “Era sobretudo o estatuto da mulher casada”, aponta Leonor Beleza. “Quando casava, a mulher passava a estar sob autoridade do chefe de família”, lembra.

O Código Civil de 1966 dava ao marido um enorme poder formal, que ia da abertura da correspond­ência à denúncia de um contrato de trabalho da mulher. Como a lei definia que só o casamento era a forma “legítima” para constituir família, os filhos fora do casamento, chamados “ilegítimos”, eram discrimina­dos em várias vertentes.

A Constituiç­ão que entrou em vigor a 25 de abril de 1976 fez cair por terra a legitimida­de jurídica

servadoras sobre a família. “Foi um privilégio”, conta.

destas normas e fixou um prazo para a alteração. Foi a comissão de reforma que fez o trabalho a partir de 1976, vendo-o reforçado em 1977, quando o novo ministro da Justiça, Almeida Santos, a encarregou de rever todo o Código Civil (o que incluiria, a título de exemplo, a passagem da maioridade dos 21 para os 18 anos de idade).

“Naquela fase da vida do País, a comissão funcionou de maneira intensa, o que era raro”, conta Beleza. Magalhães Colaço (ver caixa) não tolerava atrasos e imprimiu ritmo e exigência. “Reuníamos regularmen­te no Ministério da Justiça, sempre a horas, com muito acesso a material jurídico sobre as alterações noutros países”, diz.

Em França, Alemanha ou Reino Unido as leis tinham evoluído a partir dos anos 60 e, em 1975, a Organizaçã­o das Nações Unidas promovera o primeiro Ano Internacio­nal das Mulheres, pondo a igualdade na agenda política. O atraso português era enorme. “Ao contrário de outros países, que fizeram as modificaçõ­es em degraus, aqui foi feito de uma vez e tínhamos a sensação de que aquele período no País tinha de ser aproveitad­o para alterações profundas”, explica Leonor Beleza. E seriam profundas.

A “parte mais difícil” foi “reformular tudo” na área da filiação, onde estavam as diferenças entre os filhos nascidos dentro e fora do casamento – dos filhos de “mãe incógnita” ao facto de serem prejudicad­os na herança. Alterar as regras de sucessão do cônjuge após a morte do marido ou da mulher – sendo estatistic­amente mais frequente a primeira – foi também complexo, implicando pôr a viúva em pé de igualdade com os filhos e a família de sangue do marido. “Aqui foi precisa uma intervençã­o política mais forte, do ministro [Almeida Santos]”, conta Beleza. Houve ainda inovações como “a pri

NO INÍCIO HOUVE UMA TENTATIVA DE INFILTRAÇíO DA IGREJA CATÓLICA NA COMISSÃO, CONTA LEONOR BELEZA

meira consagraçã­o”, ainda que “muito limitada”, dos “efeitos da união de facto”.

Leonor Beleza aterrou nesta aventura com apenas 28 anos. Tendo sido uma aluna de topo no curso de Direito em Lisboa, entrou na comissão como representa­nte da Comissão da Condição Feminina, entidade pública que fora criada antes do 25 de Abril, por Maria de Lurdes Pintasilgo, e que “estava na primeira linha dos pedidos para que houvesse alterações” nas leis.

A resistênci­a conservado­ra

Aos 75 anos tem um longo percurso – é hoje Conselheir­a de Estado e presidente da Fundação Champalima­ud –, do qual destaca a aventura de 1977. “Foi de longe a experiênci­a como jurista mais fascinante e importante da minha vida”, afirma. “Eu era formada em Direito, na altura sentia na pele as discrimina­ções que a lei estabeleci­a: senti-a quando aprendi e senti-as depois na minha vida”, explica.

Na comissão houve receio sobre as “dificuldad­es de percurso” – se o período político era pós-revolucion­ário, o conservado­rismo social era grande. No início dos trabalhos, ainda no último governo provisório, houve resistênci­as do ministro Pinheiro Farinha à retirada da palavra “legítimo” da norma que definia o casamento como o único meio legítimo de constituir família. Quando foi conhecida a proposta de redação da lei, já em 1977, a Conferênci­a Episcopal Portuguesa criticou-a e o tema gerou a oposição das partes mais conservado­ras da sociedade. “Havia quem invocasse que as alterações tinham

 ?? ??
 ?? ?? Leonor Beleza, 75 anos, Conselheir­a de Estado e presidente da Fundação Champalima­ud, diz que a lei deve continuar a adaptar-se “à vida efetiva” das pessoas
Leonor Beleza, 75 anos, Conselheir­a de Estado e presidente da Fundação Champalima­ud, diz que a lei deve continuar a adaptar-se “à vida efetiva” das pessoas
 ?? ?? ◀
Leonor Beleza, aqui ministra da Saúde nos anos 80, teria vários cargos, mas a experiênci­a em 1977 permanece como um ponto alto
◀ Leonor Beleza, aqui ministra da Saúde nos anos 80, teria vários cargos, mas a experiênci­a em 1977 permanece como um ponto alto

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal