Portugal a fazer mais e melhor: a escola
O SISTEMA DE ENSINO PORTUGUÊS ENCONTRA-SE PELA PRIMEIRA VEZ EM ROTA DESCENDENTE
Talvez o maior motivo de orgulho coletivo da nossa democracia seja a Educação. Portugal ainda é, de longe, o país menos escolarizado da Europa, mas está no bom caminho para finalmente deixar de o ser. Alargámos a escola a quase toda a gente, e fizemo-lo sem comprometer a qualidade: pelo contrário, os alunos de hoje são muito melhores do que os da minha geração, e têm infinitamente melhores resultados do que os meus pais e avós. Um feito notável de todos.
No ano 2000, metade dos adultos portugueses ainda não tinha mais do que a 4.ª classe, mas a escolarização dos mais novos continuou a fazer o seu caminho. Quando eu nasci, no início dos anos 90, cerca de metade das crianças e jovens não completava a escolaridade além do ensino básico. Hoje, podemos dizer que somos um País onde a esmagadora maioria dos alunos conclui o ensino secundário.
O mais extraordinário é que o alargamento da escola a todas as crianças não se fez à custa de diminuir a qualidade e do facilitismo que tantos apregoam. Frases como “antigamente é que era bom” e “eles agora não sabem nada” não têm adesão à realidade. Os resultados, sobretudo das primeiras duas décadas do século XXI, foram extraordinariamente positivos. Apesar do trágico descalabro dos últimos anos letivos, a maioria das crianças no início desta década ainda tinham resultados muito melhores do que há 20 anos. Aliás, esses alunos eram até melhores do que os muitos países europeus com que nos comparamos e que idolatramos.
Nem tudo são rosas, ou cravos, melhor dizendo. Nos últimos 20 anos o País falhou, de forma imperdoável, na diminuição das desigualdades na escola e no combate ao peso que a pobreza tem na nossa capacidade de ter boas notas.
Aliás, o sucesso do nosso sistema de ensino, e a convergência dos nossos alunos com o resto da Europa, não pode nunca ser visto como um dado adquirido, mas sim como uma coisa pela qual temos sempre de continuar a lutar.
Na década em que celebramos os 50 anos do 25 de Abril, o sistema de ensino português encontra-se pela primeira vez em rota descendente. A pandemia, e as políticas de educação recentes, geraram uma quebra drástica dos resultados dos alunos em todos os domínios e, pior, deixaram-nos com um sistema de ensino sem professores suficientes. O período 2020-2030 corre o risco de marcar a primeira geração que teve a acesso a uma escola pública (e privada) pior do que a dos seus pais.
Há muito para fazer e celebrar, mas é também importante não esquecer que a vida se constrói a olhar para frente: estamos agora à mesma distância de 1974 que de 2074, e está na altura de planear, inovar e pensar o futuro do País e que escolas queremos criar. ●
Acomissão que ia desmantelar as regras ultraconservadoras do casamento e da sucessão arrancara há pouco tempo quando o ministro da Justiça, Pinheiro Farinha, tentou uma alteração sem aviso prévio. “Nomeou uma pessoa, certamente por indicação ou pressão da Igreja Católica, que apareceu numa reunião”, conta Leonor Beleza, que integrou a comissão entre 1976 e 1977. A tentativa de influenciar os trabalhos foi travada de imediato pela líder da comissão, Isabel Magalhães Colaço, a primeira mulher a doutorar-se em Direito em Portugal, em 1954. “A professora Magalhães Colaço entendeu que aquilo não seria adequado e essa pessoa desapareceu da comissão, foi um episódio de um dia”, relembra Beleza.
Dois anos depois do 25 de Abril, a transição para uma sociedade democrática e com igualdade de direitos passava pela revisão profunda das leis do Estado Novo sobre a família. “Era sobretudo o estatuto da mulher casada”, aponta Leonor Beleza. “Quando casava, a mulher passava a estar sob autoridade do chefe de família”, lembra.
O Código Civil de 1966 dava ao marido um enorme poder formal, que ia da abertura da correspondência à denúncia de um contrato de trabalho da mulher. Como a lei definia que só o casamento era a forma “legítima” para constituir família, os filhos fora do casamento, chamados “ilegítimos”, eram discriminados em várias vertentes.
A Constituição que entrou em vigor a 25 de abril de 1976 fez cair por terra a legitimidade jurídica
servadoras sobre a família. “Foi um privilégio”, conta.
destas normas e fixou um prazo para a alteração. Foi a comissão de reforma que fez o trabalho a partir de 1976, vendo-o reforçado em 1977, quando o novo ministro da Justiça, Almeida Santos, a encarregou de rever todo o Código Civil (o que incluiria, a título de exemplo, a passagem da maioridade dos 21 para os 18 anos de idade).
“Naquela fase da vida do País, a comissão funcionou de maneira intensa, o que era raro”, conta Beleza. Magalhães Colaço (ver caixa) não tolerava atrasos e imprimiu ritmo e exigência. “Reuníamos regularmente no Ministério da Justiça, sempre a horas, com muito acesso a material jurídico sobre as alterações noutros países”, diz.
Em França, Alemanha ou Reino Unido as leis tinham evoluído a partir dos anos 60 e, em 1975, a Organização das Nações Unidas promovera o primeiro Ano Internacional das Mulheres, pondo a igualdade na agenda política. O atraso português era enorme. “Ao contrário de outros países, que fizeram as modificações em degraus, aqui foi feito de uma vez e tínhamos a sensação de que aquele período no País tinha de ser aproveitado para alterações profundas”, explica Leonor Beleza. E seriam profundas.
A “parte mais difícil” foi “reformular tudo” na área da filiação, onde estavam as diferenças entre os filhos nascidos dentro e fora do casamento – dos filhos de “mãe incógnita” ao facto de serem prejudicados na herança. Alterar as regras de sucessão do cônjuge após a morte do marido ou da mulher – sendo estatisticamente mais frequente a primeira – foi também complexo, implicando pôr a viúva em pé de igualdade com os filhos e a família de sangue do marido. “Aqui foi precisa uma intervenção política mais forte, do ministro [Almeida Santos]”, conta Beleza. Houve ainda inovações como “a pri
NO INÍCIO HOUVE UMA TENTATIVA DE INFILTRAÇÃO DA IGREJA CATÓLICA NA COMISSÃO, CONTA LEONOR BELEZA
meira consagração”, ainda que “muito limitada”, dos “efeitos da união de facto”.
Leonor Beleza aterrou nesta aventura com apenas 28 anos. Tendo sido uma aluna de topo no curso de Direito em Lisboa, entrou na comissão como representante da Comissão da Condição Feminina, entidade pública que fora criada antes do 25 de Abril, por Maria de Lurdes Pintasilgo, e que “estava na primeira linha dos pedidos para que houvesse alterações” nas leis.
A resistência conservadora
Aos 75 anos tem um longo percurso – é hoje Conselheira de Estado e presidente da Fundação Champalimaud –, do qual destaca a aventura de 1977. “Foi de longe a experiência como jurista mais fascinante e importante da minha vida”, afirma. “Eu era formada em Direito, na altura sentia na pele as discriminações que a lei estabelecia: senti-a quando aprendi e senti-as depois na minha vida”, explica.
Na comissão houve receio sobre as “dificuldades de percurso” – se o período político era pós-revolucionário, o conservadorismo social era grande. No início dos trabalhos, ainda no último governo provisório, houve resistências do ministro Pinheiro Farinha à retirada da palavra “legítimo” da norma que definia o casamento como o único meio legítimo de constituir família. Quando foi conhecida a proposta de redação da lei, já em 1977, a Conferência Episcopal Portuguesa criticou-a e o tema gerou a oposição das partes mais conservadoras da sociedade. “Havia quem invocasse que as alterações tinham