MARIA ANTÓNIA LOPES “Quando a nobreza precisava de dinheiro ia às Misericórdias”
As nomeações partidárias, os “jobs for the boys” e a apropriação do dinheiro da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa são práticas que duram ali há quase 200 anos, explica a historiadora.
As nomeações partidárias para a provedoria da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), os “jobs for the boys” e a apropriação do dinheiro da instituição são problemas de hoje - e são, também, práticas que duram ali desde meados do século XIX, explica Maria Antónia Lopes. A professora da Universidade de Coimbra, e especialista na história das misericórdias, nota que a apetência pelo dinheiro destas instituições, em particular a de Lisboa, é até anterior ao século XIX. “Houve misericórdias quase levadas à falência por causa da nobreza local”, conta. A exoneração de Ana Jorge pelo novo governo AD e a má gestão (anterior à provedora) que levou a 100 milhões de euros em prejuízos encaixam no padrão histórico da Santa Casa que, apesar do nome, já não é uma Misericórdia há quase 200 anos – desde que, por falta de irmãos eleitores e de saúde financei
“Na Monarquia Constitucional [o provedor] era mesmo alguém do partido do governo”
ASFRASES
Pombal
O Marquês pôs fim aos créditos da Santa Casa à aristocracia, mas usou a instituição para financiar as suas políticas ra, foi extinta pelo governo e posta sob sua tutela.
A SCML tem estado na ordem do dia por causa de dezenas de milhões de euros em prejuízos e de nomeações e exonerações de cariz político. Isto é novo?
Não, não é nada de novo. Desde 1851 que ficou estabelecido na lei que o provedor é de nomeação do governo e, portanto, pode ser exonerado se não for da sua confiança política. Não percebo porque não o dizem frontalmente, tem sido assim há quase 200 anos. Já antes de 1851 acontecia, mas nesse ano um decreto clarificou completamente a situação da Misericórdia de Lisboa, só a de Lisboa. O seu provedor era de nomeação régia, mas na verdade era o ministro do reino que tutelava e nomeava.
Que pessoas eram escolhidas? Vinham mais da aristocracia?
Sim, no século XIX ainda havia alguns aristocratas, mas eram pessoas da confiança política a quem se reconhecia alguma competência para governar uma instituição deste tipo. Podiam ser da aristocracia ou da alta burguesia, que era quem dominava na Monarquia Constitucional. Depois, com a Primeira República, obviamente alguém da confiança política, e muito mais ainda a seguir, no Estado Novo. Só uma pessoa do regime, de inteira confiança política, seria nomeada. Aliás, no Estado Novo isso foi praticado quase por sistema, em todas as Misericórdias.
Confiança política aqui quer dizer o quê? Alguém que vai estar alinhado com os objetivos políticos do governo ou do regime?
Do governo. Na Monarquia Constitucional havia dois partidos sempre em alternância e, portanto, era mesmo alguém do partido do governo. Se, por exemplo, o Partido Regenerador ganhava e caía um governo Progressista, o mais certo
era que o novo Ministro do Reino exonerasse [o provedor da Misericórdia de Lisboa] para lá colocar alguém ligado ao partido.
É o que acontece hoje, não é? Desde 1974 há uma sobreposição grande entre a cor política do partido no governo e a cor política do provedor.
Mas isto não é desde 1974. É desde meados do século XIX. É claro que no Estado Novo, regime de partido único, o provedor era necessariamente alguém do regime. Não havia alterações nas chefias da Santa Casa de Lisboa em função dos resultados eleitorais no país.
Era assim na SCML e nas restantes Misericórdias?
Não. A Misericórdia de Lisboa, apesar de manter esse nome, não é uma Misericórdia porque nem sequer tem um corpo de irmãos que eleja e escrutine o governo da instituição, que é nomeado pelo Governo nacional. As outras mantiveram a sua natureza de Misericórdia: é o grupo das pessoas que a compõem, que se chama irmandade, que elege os corpos diretivos, que não recebem qualquer remuneração. Se ocorresse uma nomeação por parte do governo – o que aconteceu na Monarquia Constitucional, na Primeira República e no Estado Novo – isso podia não violar a lei se o Governo provasse que havia grandes irregularidades nas misericórdias. Tinha o poder de destituir a mesa e instalar uma comissão administrativa que iria repor a normalidade e depois devolver à irmandade os seus direitos eleitorais. Como o domínio das misericórdias era apetecível, mas não podiam fazê-lo a não ser invocando as tais irregularidades, inventava-se um problema inexistente para exonerar e nomear alguém.
“Interessa que tenha alguém que vá fazer a vontade ao Governo. Isto sempre foi assim”
Inventava-se um pretexto para haver uma intervenção política?
Sim, em todas as Misericórdias faziam assim. Mas a de Lisboa é uma instituição completamente diferente. Tanto assim é que a Santa Casa de Lisboa não integra a União das Misericórdias. Manteve o nome, mas não é uma Misericórdia. E por isso, gostemos ou não, o governo tem, de facto, legitimidade para colocar lá quem mais lhe interessa. O que não tem é legitimidade para denegrir a reputação de alguém só para justificar a sua saída. Devia ter coragem de dizer que é por motivos políticos.
As nomeações partidárias ligam-se a um historial de apropriação do dinheiro da Santa Casa para financiar políticas do governo. O Marquês de Pombal teve de pôr ordem nos créditos da SCML, não sei se terá sido o único.
O Marquês de Pombal doou à Santa Casa de Lisboa património de vulto, incluindo os edifícios da sede atual, e ele nem precisava
Q de ter lá um provedor da sua confiança para intervir porque era ministro de uma monarquia absoluta. E não precisou. Proibiu a Misericórdia de Lisboa de emprestar dinheiro e juros a quem quer que fosse, a não ser a uma companhia monopolista do Estado. Pronto. E assim desviou o capital. No regime constitucional, já não se podia atuar dessa forma. Aos governos deste regime interessava nomear alguém da cor política nessa e em muitas misericórdias, não para se apropriarem diretamente do dinheiro, mas para pagarem favores. Era aquilo a que agora se chama “jobs for the boys”. Nas Misericórdias do resto do país pagavam com provedorias a gente que tinha conseguido fazer ganhar o partido no seu círculo. E em Lisboa era a mesma coisa. Aqui também se podia fazer com que a Misericórdia pagasse tarefas que seriam do Estado.
Isso passa-se hoje com a SCML, que recebe responsabilidades sem financiamento, que teve o seu hospital de Alcoitão a receber menos do que outros hospitais do Estado ou que resgatou o Hospital da Cruz Vermelha, que o Estado [acionista] não queria.
É isso. Está a ver? Isso aí, de facto, são milhões e milhões de que o Estado, podemos dizer, se apropria se não forem acautelados os interesses da Santa Casa. E por isso interessa que tenha aí alguém que vá fazer a vontade ao Governo. Isto sempre foi assim.
Salazar foi provedor da Santa Casa da Misericórdia de Coimbra. Como foi lá parar?
Desde o século XIX que a maioria dos provedores da Misericórdia de Coimbra eram professores universitários. Também desde essa época, e depois na Primeira República, as elites da cidade estavam fraturadas entre católicos conservadores e progressistas não católicos (ou melhor, não católicos militantes). Essa guerra também se travou pelo domínio da Misericórdia. Salazar foi eleito em 1920, integrando a ala dos católicos. Só cumpriu um mandato.
Há sempre guerras enormes pelo controlo de algo que, em tese, devia ser só uma instituição de assistência aos mais pobres.
Pois, mas nunca foi, porque as Misericórdias são muito poderosas. As Misericórdias por aí, nem estou a falar só da de Lisboa.
Poderosas como?
Basta pensar que em muitos concelhos rurais são as maiores empregadoras, mais do que as câmaras. No século XIX havia várias Misericórdias que tinham orçamentos muito superiores aos das Câmaras Municipais. Eram empregadoras, incluindo dos grupos de elites, de advogados e médicos, por exemplo. Até ao 25 de Abril [de 1974], com a exceção de Lisboa, de Coimbra e do Hospital de São João do Porto, todos os outros hospitais eram das Misericórdias. Os provedores tinham poder para contratar e despedir médicos, enfermeiros, cirurgiões. E depois era todo o fornecimento a um hospital, que se pode entregar aos amigos, etc. etc.
No caso da Santa Casa de Lisboa, a maior parte da receita vem de uma percentagem do monopólio do jogo. Nas Misericórdias vem de onde?
Todas, incluindo a de Lisboa, historicamente emprestavam dinheiro a juros. Numa época em que não existiam bancos, quem concedia crédito eram as instituições ou as pessoas que tinham dinheiro. As Misericórdias eram as grandes credoras deste país. Emprestavam dinheiro garantido com hipotecas, como agora os bancos.
Emprestavam às elites, e frequentemente à própria elite aristocrática que fazia parte dos órgãos sociais da Misericórdia?
Sempre. Quando a nobreza precisava de dinheiro – e precisava sempre [ri-se] – instalava-se nas Misericórdias, fazendo entrar um irmão, um cunhado, ou um sobrinho, que facilitava os créditos. Quando Pombal proibiu a Misericórdia de Lisboa de emprestar dinheiro a juros foi um golpe para a nobreza. Houve Misericórdias levadas quase à falência, por causa da nobreza local, que não restituía os capitais, nem pagava os juros.
Era assim em todas?
Em todo o lado era assim. Depois, na monarquia parlamentar, a partir de 1834, temos também a alta burguesia a fazer o mesmo. E por isso é que interessava dominar as Misericórdias. Por exemplo, nas décadas de 1870 e 1880 há jornais locais a denunciar que dada Misericórdia perseguia os credores que eram do outro partido [ri-se], obrigando-os a pagar tudo de um dia para o outro, enquanto fechava os olhos às dívidas dos correligionários.
Esperava que a cultura institucional em Portugal tivesse mudado um bocadinho nos últimos 200 anos? Estamos a debater hoje coisas que parecem encaixar num padrão histórico.
Sim, encaixam. Pelos vistos é da natureza humana. E, infelizmente, isso vê-se aí em muitos outros comportamentos.