Centeno
Por ano chegam centenas de pedidos para descativar verbas que estavam orçamentadas ou pedir autorização para gastar além do previsto. Não é de agora. Mas nunca o poder do ministro sobre a despesa foi tão alto – e o défice tão baixo.
A máquina do Ministério das Finanças
Caso prático real: o pedido que chegou em 2017 ao ministério das Finanças veio de um serviço do Estado que invocava a necessidade de gastar mais. Este serviço já fora contemplado com um aumento de orçamento, mas apontava agora para uma subida muito maior da despesa – quase o dobro. Razão: a necessidade de deslocar as instalações para o Saldanha, no centro de Lisboa, o que custaria muito mais em arrendamento do que na zona da capital em que estava instalado. Os técnicos da Direcção-Geral do Orçamento (DGO) sinalizaram o pedido e a Secretaria de Estado contactou a tutela política daquele serviço para perceber se havia alguma razão válida para autorizar a despesa – o Ministério do outro lado informou que não havia e o pedido foi recusado sem mais. “É normal haver pedidos de serviços que querem duplicar a despesa”, conta uma fonte governativa.
Por razões mais e menos válidas chegam por ano ao Ministério das Finanças centenas de pedidos dos serviços públicos. Estes dividem-se, no essencial, em dois tipos: pedidos para poder gastar toda a despesa que estava prevista no orçamento e pedidos para autorizar despesa além do orçamentado. Os primeiros dizem respeito às famosas cativações, que entraram em força no debate público o ano passado – as Finanças retêm parte das verbas orçamentadas, que só podem ser desbloqueadas mediante um pedido e uma autorização do Ministério de Mário Centeno. Mas é nos segundos, ou seja, no controlo dos reforços de despesa frequente- mente confundidos com as cativações, que estão os casos polémicos em áreas sensíveis como o Serviço Nacional de Saúde.
Uns e outros são reflexo dos instrumentos de controlo da despesa ao dispor do ministério liderado por Mário Centeno. Nas cativações este poder cresceu muito com o actual ministro. No ano passado, por exemplo, a equipa de Centeno cativou à cabeça 1.880 milhões de euros, mais 678 milhões do que Maria Luís Albuquerque em 2015 (também descativou muito – já lá iremos). Esta centralização nas Finanças tem gerado críticas dos partidos e levou a presidente do Conselho das Finanças Públicas, Teodora Cardoso, a afirmar mais do que uma vez que na “gestão de despesa continuamos no [tempo] de Salazar”. A economista gostaria de ver os Ministérios a ganharem maior capacidade de gestão e autonomia.
O controlo é retratado habitualmente no debate político como sendo feito directamente por Mário Centeno, mas o responsável máximo do Ministério não intervém assim tanto no processo. “Tenta-se não levar todos os problemas ao ministro”, explica uma fonte ouvida pela SÁBADO .Énas secretarias de Estado lideradas por dois homens muito discretos – João Leão no Orçamento e Álvaro Novo no Tesouro – que se concentra a maior parte do trabalho. Não há um critério fixo para levar descativações ou pedidos de aumento de verba à mesa de Centeno. Pode haver um montante grande que seja fácil de avaliar (se decorrer de uma decisão judicial, por exemplo) e de decidir – e um não tão grande cuja avaliação política seja mais complexa, como mais contratações para o Estado, uma despesa rígida e prioritária na ordem de pagamentos.
MÁRIO CENTENO NÃO INTERVÉM ASSIM TANTO EM CATIVAÇÕES E REFORÇOS DE VERBA As armas Três formas de controlo da despesa pelas Finanças Cativações
Retêm parte do orçamento dos serviços. Vão descativando ao longo do ano, mas não tudo
Reserva orçamental
A cativação transversal de 2,5% – excepto na Saúde e na Educação – alimenta a reserva orçamental, gerida pelas Finanças
Dotação provisional Um saco gerido pelas Finanças tipicamente para imprevistos, reforços de verba e aumentos salariais no Estado
Os pedidos de libertação de verba seguem um circuito. Para ter o dinheiro descativado qualquer serviço do Estado tem de enviar por escrito o seu pedido fundamentado para duas chefias: o ministério dessa área e o Ministério das Finanças. Quando chega às Finanças a primeira avaliação é tipicamente feita pelos técnicos da Direcção-Geral do Orçamento.
Libertar ou não, eis a questão
Estes técnicos não são especialistas nas várias áreas em que o Estado presta serviços e olham para os números: vêem quanto gastou aquele serviço no ano anterior, comparam com o que quer gastar agora, tentam perceber se houve medidas políticas que levaram a essa necessidade. Além das cativações habitualmente feitas pelos governos anteriores – 15% dos gastos na compra de bens e serviços e 12,5% nas despesas de investimento – o Governo actual pôs os serviços com aumentos de 2% no seu orçamento a terem de justificar porque precisam da descativação das verbas.
O motivo geral para ser mais ou menos generoso na descativação de verbas ou nos reforços começa por ser a razão que levou às cativações: a execução orçamental. Se esta estiver a correr bem, sobretudo no lado da receita, as Finanças vão libertando dinheiro cativado. No ano passado, em que a conjuntura económica e o mercado de dívida deram uma folga significativa, a equipa de Centeno libertou cerca de 73% das verbas cativadas no início do ano, ou seja, 1.370 milhões de euros, segundo o Conselho das Finanças Públicas. Ainda assim ficaram na gaveta 510 milhões, um valor em linha com os dos anos de Maria Luís Albuquerque e Vítor Gaspar nas Finanças (em 2016 Centeno cativou um recorde de 941 milhões de euros). Há casos em que a decisão sobre os pedidos dos serviços é simples. Se na altura em que faz o pedido – normalmente no segundo semestre, quando o dinheiro começa a apertar – a execução do orçamento estiver abaixo do ano anterior a descativação é autorizada. Mas se, como já aconteceu, o serviço quiser descativar para comprar carros, mesmo que não seja suposto esse serviço ter carros, o pedido é rapidamente negado. E se a despesa que se quer descativar não tiver receita própria desse serviço para compensar, as Finanças também chumbam – estas cativações são a forma de controlar a tendência dos serviços de empolarem as receitas próprias no orçamento para poderem gastar mais.
As Finanças dizem que as verbas cativadas por esta razão explicam a maioria das cativações no fim do ano – que, por isso, não são verdadeiras cativações. A SÁBADO perguntou qual é o peso desta
QUANDO RECEBERAM O PEDIDO PARA MAIS 700 MÉDICOS AS FINANÇAS PERGUNTARAM “PARA ONDE?”
razão no total dos cativos, mas não obteve resposta. Também não são conhecidos que gastos as Finanças deixam na gaveta – o Ministério prefere divulgar onde descativou.
Nos casos mais complexos, os pedidos de descativação podem subir ao ministro ou levar a um pedido de informação ao ministério que tutela o serviço em causa. “Já aconteceu o Ministério da Administração Interna achar que não se justifica mais despesa na área daquele serviço que estava a pedir, mas sim na de outro”, explica a mesma fonte governativa.
Há Governo além de Centeno
Há mais articulação entre as Finanças e os vários ministérios do que o sugerido pelo discurso político, que tende naturalmente a colocar no Ministério das Finanças a responsabilidade total pela alocação de meios. Esta interacção existe especialmente num outro instrumento além das cativações: o controlo dos reforços de verba, além do orçamentado, pedidos pelos serviços.
O caso polémico do concurso de colocação de médicos especialistas no SNS, que o Governo demorou 10 meses a completar, é um exemplo dessa articulação. Quando as Finanças receberam o pedido da Saúde para a colocação no Estado de cerca de 700 médicos especialistas devolveram-no com uma pergunta: quais eram as necessidades concretas no SNS que justificavam aqueles 700 médicos? Do outro lado a resposta viria dois meses mais tarde, sabe a SÁBADO, com um pedido mais modesto: afinal eram precisos apenas 500. No concurso candidataram-se 400 médicos, o que para a Ordem dos Médicos se ficou a dever à demora que levou profissionais a desistirem do SNS. À SÁBADO, nem o Ministério das Finanças, nem o da Saúde explicaram o atraso.
Em alguns casos excepcionais as Finanças negam publicamente imputações de responsabilidades por atrasos. Quando a revista Vi-
são noticiou, citando a Infraestruturas de Portugal, que havia obras urgentes na ponte 25 de Abril paradas há meio ano por falta de visto das Finanças, o ministério reagiu duas vezes no mesmo dia para negar que o processo estivesse aí parado durante esse tempo. No caso dos sinos do convento de Mafra, que estão em risco de queda, fonte governativa afirma que a autorização foi dada em três dias. É na Saúde que a pressão dos pedidos de verbas e a pressão mediática sobre os atrasos do ministério de Centeno é maior – as Finanças recebem mais pedidos de reforço de verba do que de descativação e uma parte importante vem do SNS. Por lei não há cativação de verbas orçamentadas para prestação de cuidados de saúde, o que levou o ministro a reafirmar no parlamento – onde foi chamado no início deste mês pelo CDS para uma audição na comissão de saúde – que “não há um euro cativado no SNS”. Mas o subfinanciamento crónico do sector leva a pedidos constantes ao longo do ano para reforço de verbas – pedidos que não são aprovados pelas Finanças ao ritmo a que entram.
O ministro defende-se com o aumento de 670 milhões de euros para o orçamento da Saúde e com o reforço de verba no ano passado para pagar dívidas, mas a pressão sobre o sector é notória. Moisés Ferreira, deputado do Bloco de Esquerda, citou na mesma audição parlamentar vários exemplos de hospitais pelo País que aguardam visto para comprarem equipamento importante de diagnóstico e são frequentes os casos noticiados de falta grave de condições nos tratamentos. Ricardo Baptista Leite, do PSD, ironizou dizendo que o Ministério da Saúde está transformado numa mera direcção-geral das Finanças. Dentro do ministério argumenta-se que é natural que cada tutela olhe apenas para a sua situação em particular, mas que cabe às Finanças olhar para o todo e gerir a libertação de cativações e de reforços extras em função disso – e das escolhas políticas assumidas por todo o Governo liderado por António Costa quando o Orçamento foi desenhado, o que inclui o objectivo de redução da dívida pública. O uso destes instrumentos de controlo pela equipa de Centeno não vai parar – e, com o défice a caminho de zero e serviços como o SNS a sofrerem com carências, as críticas também não.
AS CATIVAÇÕES DOMINAM O DEBATE, MAS É NOS REFORÇOS DE VERBA QUE ESTÁ A POLÉMICA