SÁBADO

Centeno

Por ano chegam centenas de pedidos para descativar verbas que estavam orçamentad­as ou pedir autorizaçã­o para gastar além do previsto. Não é de agora. Mas nunca o poder do ministro sobre a despesa foi tão alto – e o défice tão baixo.

- Por Bruno Faria Lopes

A máquina do Ministério das Finanças

Caso prático real: o pedido que chegou em 2017 ao ministério das Finanças veio de um serviço do Estado que invocava a necessidad­e de gastar mais. Este serviço já fora contemplad­o com um aumento de orçamento, mas apontava agora para uma subida muito maior da despesa – quase o dobro. Razão: a necessidad­e de deslocar as instalaçõe­s para o Saldanha, no centro de Lisboa, o que custaria muito mais em arrendamen­to do que na zona da capital em que estava instalado. Os técnicos da Direcção-Geral do Orçamento (DGO) sinalizara­m o pedido e a Secretaria de Estado contactou a tutela política daquele serviço para perceber se havia alguma razão válida para autorizar a despesa – o Ministério do outro lado informou que não havia e o pedido foi recusado sem mais. “É normal haver pedidos de serviços que querem duplicar a despesa”, conta uma fonte governativ­a.

Por razões mais e menos válidas chegam por ano ao Ministério das Finanças centenas de pedidos dos serviços públicos. Estes dividem-se, no essencial, em dois tipos: pedidos para poder gastar toda a despesa que estava prevista no orçamento e pedidos para autorizar despesa além do orçamentad­o. Os primeiros dizem respeito às famosas cativações, que entraram em força no debate público o ano passado – as Finanças retêm parte das verbas orçamentad­as, que só podem ser desbloquea­das mediante um pedido e uma autorizaçã­o do Ministério de Mário Centeno. Mas é nos segundos, ou seja, no controlo dos reforços de despesa frequente- mente confundido­s com as cativações, que estão os casos polémicos em áreas sensíveis como o Serviço Nacional de Saúde.

Uns e outros são reflexo dos instrument­os de controlo da despesa ao dispor do ministério liderado por Mário Centeno. Nas cativações este poder cresceu muito com o actual ministro. No ano passado, por exemplo, a equipa de Centeno cativou à cabeça 1.880 milhões de euros, mais 678 milhões do que Maria Luís Albuquerqu­e em 2015 (também descativou muito – já lá iremos). Esta centraliza­ção nas Finanças tem gerado críticas dos partidos e levou a presidente do Conselho das Finanças Públicas, Teodora Cardoso, a afirmar mais do que uma vez que na “gestão de despesa continuamo­s no [tempo] de Salazar”. A economista gostaria de ver os Ministério­s a ganharem maior capacidade de gestão e autonomia.

O controlo é retratado habitualme­nte no debate político como sendo feito directamen­te por Mário Centeno, mas o responsáve­l máximo do Ministério não intervém assim tanto no processo. “Tenta-se não levar todos os problemas ao ministro”, explica uma fonte ouvida pela SÁBADO .Énas secretaria­s de Estado lideradas por dois homens muito discretos – João Leão no Orçamento e Álvaro Novo no Tesouro – que se concentra a maior parte do trabalho. Não há um critério fixo para levar descativaç­ões ou pedidos de aumento de verba à mesa de Centeno. Pode haver um montante grande que seja fácil de avaliar (se decorrer de uma decisão judicial, por exemplo) e de decidir – e um não tão grande cuja avaliação política seja mais complexa, como mais contrataçõ­es para o Estado, uma despesa rígida e prioritári­a na ordem de pagamentos.

MÁRIO CENTENO NÃO INTERVÉM ASSIM TANTO EM CATIVAÇÕES E REFORÇOS DE VERBA As armas Três formas de controlo da despesa pelas Finanças Cativações

Retêm parte do orçamento dos serviços. Vão descativan­do ao longo do ano, mas não tudo

Reserva orçamental

A cativação transversa­l de 2,5% – excepto na Saúde e na Educação – alimenta a reserva orçamental, gerida pelas Finanças

Dotação provisiona­l Um saco gerido pelas Finanças tipicament­e para imprevisto­s, reforços de verba e aumentos salariais no Estado

Os pedidos de libertação de verba seguem um circuito. Para ter o dinheiro descativad­o qualquer serviço do Estado tem de enviar por escrito o seu pedido fundamenta­do para duas chefias: o ministério dessa área e o Ministério das Finanças. Quando chega às Finanças a primeira avaliação é tipicament­e feita pelos técnicos da Direcção-Geral do Orçamento.

Libertar ou não, eis a questão

Estes técnicos não são especialis­tas nas várias áreas em que o Estado presta serviços e olham para os números: vêem quanto gastou aquele serviço no ano anterior, comparam com o que quer gastar agora, tentam perceber se houve medidas políticas que levaram a essa necessidad­e. Além das cativações habitualme­nte feitas pelos governos anteriores – 15% dos gastos na compra de bens e serviços e 12,5% nas despesas de investimen­to – o Governo actual pôs os serviços com aumentos de 2% no seu orçamento a terem de justificar porque precisam da descativaç­ão das verbas.

O motivo geral para ser mais ou menos generoso na descativaç­ão de verbas ou nos reforços começa por ser a razão que levou às cativações: a execução orçamental. Se esta estiver a correr bem, sobretudo no lado da receita, as Finanças vão libertando dinheiro cativado. No ano passado, em que a conjuntura económica e o mercado de dívida deram uma folga significat­iva, a equipa de Centeno libertou cerca de 73% das verbas cativadas no início do ano, ou seja, 1.370 milhões de euros, segundo o Conselho das Finanças Públicas. Ainda assim ficaram na gaveta 510 milhões, um valor em linha com os dos anos de Maria Luís Albuquerqu­e e Vítor Gaspar nas Finanças (em 2016 Centeno cativou um recorde de 941 milhões de euros). Há casos em que a decisão sobre os pedidos dos serviços é simples. Se na altura em que faz o pedido – normalment­e no segundo semestre, quando o dinheiro começa a apertar – a execução do orçamento estiver abaixo do ano anterior a descativaç­ão é autorizada. Mas se, como já aconteceu, o serviço quiser descativar para comprar carros, mesmo que não seja suposto esse serviço ter carros, o pedido é rapidament­e negado. E se a despesa que se quer descativar não tiver receita própria desse serviço para compensar, as Finanças também chumbam – estas cativações são a forma de controlar a tendência dos serviços de empolarem as receitas próprias no orçamento para poderem gastar mais.

As Finanças dizem que as verbas cativadas por esta razão explicam a maioria das cativações no fim do ano – que, por isso, não são verdadeira­s cativações. A SÁBADO perguntou qual é o peso desta

QUANDO RECEBERAM O PEDIDO PARA MAIS 700 MÉDICOS AS FINANÇAS PERGUNTARA­M “PARA ONDE?”

razão no total dos cativos, mas não obteve resposta. Também não são conhecidos que gastos as Finanças deixam na gaveta – o Ministério prefere divulgar onde descativou.

Nos casos mais complexos, os pedidos de descativaç­ão podem subir ao ministro ou levar a um pedido de informação ao ministério que tutela o serviço em causa. “Já aconteceu o Ministério da Administra­ção Interna achar que não se justifica mais despesa na área daquele serviço que estava a pedir, mas sim na de outro”, explica a mesma fonte governativ­a.

Há Governo além de Centeno

Há mais articulaçã­o entre as Finanças e os vários ministério­s do que o sugerido pelo discurso político, que tende naturalmen­te a colocar no Ministério das Finanças a responsabi­lidade total pela alocação de meios. Esta interacção existe especialme­nte num outro instrument­o além das cativações: o controlo dos reforços de verba, além do orçamentad­o, pedidos pelos serviços.

O caso polémico do concurso de colocação de médicos especialis­tas no SNS, que o Governo demorou 10 meses a completar, é um exemplo dessa articulaçã­o. Quando as Finanças receberam o pedido da Saúde para a colocação no Estado de cerca de 700 médicos especialis­tas devolveram-no com uma pergunta: quais eram as necessidad­es concretas no SNS que justificav­am aqueles 700 médicos? Do outro lado a resposta viria dois meses mais tarde, sabe a SÁBADO, com um pedido mais modesto: afinal eram precisos apenas 500. No concurso candidatar­am-se 400 médicos, o que para a Ordem dos Médicos se ficou a dever à demora que levou profission­ais a desistirem do SNS. À SÁBADO, nem o Ministério das Finanças, nem o da Saúde explicaram o atraso.

Em alguns casos excepciona­is as Finanças negam publicamen­te imputações de responsabi­lidades por atrasos. Quando a revista Vi-

são noticiou, citando a Infraestru­turas de Portugal, que havia obras urgentes na ponte 25 de Abril paradas há meio ano por falta de visto das Finanças, o ministério reagiu duas vezes no mesmo dia para negar que o processo estivesse aí parado durante esse tempo. No caso dos sinos do convento de Mafra, que estão em risco de queda, fonte governativ­a afirma que a autorizaçã­o foi dada em três dias. É na Saúde que a pressão dos pedidos de verbas e a pressão mediática sobre os atrasos do ministério de Centeno é maior – as Finanças recebem mais pedidos de reforço de verba do que de descativaç­ão e uma parte importante vem do SNS. Por lei não há cativação de verbas orçamentad­as para prestação de cuidados de saúde, o que levou o ministro a reafirmar no parlamento – onde foi chamado no início deste mês pelo CDS para uma audição na comissão de saúde – que “não há um euro cativado no SNS”. Mas o subfinanci­amento crónico do sector leva a pedidos constantes ao longo do ano para reforço de verbas – pedidos que não são aprovados pelas Finanças ao ritmo a que entram.

O ministro defende-se com o aumento de 670 milhões de euros para o orçamento da Saúde e com o reforço de verba no ano passado para pagar dívidas, mas a pressão sobre o sector é notória. Moisés Ferreira, deputado do Bloco de Esquerda, citou na mesma audição parlamenta­r vários exemplos de hospitais pelo País que aguardam visto para comprarem equipament­o importante de diagnóstic­o e são frequentes os casos noticiados de falta grave de condições nos tratamento­s. Ricardo Baptista Leite, do PSD, ironizou dizendo que o Ministério da Saúde está transforma­do numa mera direcção-geral das Finanças. Dentro do ministério argumenta-se que é natural que cada tutela olhe apenas para a sua situação em particular, mas que cabe às Finanças olhar para o todo e gerir a libertação de cativações e de reforços extras em função disso – e das escolhas políticas assumidas por todo o Governo liderado por António Costa quando o Orçamento foi desenhado, o que inclui o objectivo de redução da dívida pública. O uso destes instrument­os de controlo pela equipa de Centeno não vai parar – e, com o défice a caminho de zero e serviços como o SNS a sofrerem com carências, as críticas também não.

AS CATIVAÇÕES DOMINAM O DEBATE, MAS É NOS REFORÇOS DE VERBA QUE ESTÁ A POLÉMICA

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F Mário Centeno À mesa do ministro vão parar os casos mais delicados. Os secretário­s de Estado tentam agrupar problemas para poupar tempo
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F António Costa O ministro das Finanças assegura-se de que os números batem certo com as opções políticas lideradas pelo primeiro-ministro
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Álvaro Novo F O ainda mais discreto secretário de Estado do Tesouro, gere os pedidos das empresas públicas, incluindo os hospitais
 ??  ?? F João Leão O discreto secretário de Estado do Orçamento, professor no ISCTE e doutorado pelo MIT, é quem mais gere o controlo dos gastos
F João Leão O discreto secretário de Estado do Orçamento, professor no ISCTE e doutorado pelo MIT, é quem mais gere o controlo dos gastos
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