Sérgio Traguil
Foi vigilante de um centro de sem-abrigo e passou multas em Lisboa. A seguir enriqueceu e faliu numa parceria com empresários nigerianos. Hoje está no Kabuscorp, em Angola
O português que treina o clube de Bento Kangamba
OKabuscorp (4º classificado do campeonato angolano) é dos clubes mais populares de Luanda: concentra os adeptos dos bairros de lata do Palanca e do Cazenga e é propriedade do general Bento Kangamba, empresário milionário ligado ao MPLA que já foi procurado pela Interpol por suspeitas de tráfico internacional de mulheres. O treinador é Sérgio Traguil. Com 37 anos, nasceu em Portalegre, numa família retornada de Angola e jogou no Estrela e no Desportivo locais.
Foi no videojogo Championship Manager que se apaixonou pela táctica. Para pagar o curso de treinador, trabalhou como nadador-salvador e agente da EMEL. Passou pelas escolinhas do Benfica, esteve na Nigéria e no Gana e viveu um pesadelo com o Estrela de Portalegre. Agora procura o sucesso em Angola. A SÁBADO encontrou-o em Luanda e ficou a conhecer um percurso que reflecte uma realidade paralela do futebol moderno – convites pelo Facebook e empresários sem escrúpulos – e a adaptação de um técnico português a África. “O meu pai esteve na guerra do Ultramar e conheceu aqui a minha mãe, angolana. De todos os meus irmãos, fui o único que já nasceu em Portugal. Havia muitos retornados em Portalegre, mas eram tempos difíceis. Vivíamos seis ou sete dentro de um T1. No entanto, não é por isso que aqui estou. Foi o destino.”
Em miúdo, Sérgio era adepto do AC Milan, por sugestão de um familiar, e depois passou para o Benfica. Começou a jogar nos infantis do Estrela de Portalegre. A médio defensivo. “Era o melhor a bater. Batia na minha própria sombra”, conta. Aos 21 anos, percebeu que não tinha nascido para ser futebolista, mas para ser treinador. “Comecei a estudar futebol por causa do videojogo Championship Manager. Depois comecei a descarregar manuais sobre preparação física e até sobre fisioterapia. Como não tinha computador tinha de fazê-lo em casa de amigos. No balneário, diziam-me que tinha jeito e que conseguia ver coisas que até o treinador não conseguia.” Os cursos de treinador eram caros, e como a família não era abastada teve de fazer outras coisas para ganhar dinheiro. Em Portalegre, trabalhou nas piscinas e foi vigilante de um centro de acolhimento para sem-abrigo. Quando foi estudar para Lisboa, com 29 anos, trabalhava de manhã como fiscal da EMEL. “Um dia, fui chamado para bloquear um carro numa rua perto do IPO. Quando lá cheguei, estava uma mulher com um bebé ao colo, que tinha cancro. Aquilo deitou-me abaixo. Fiquei afectado. Era com esse dinheiro que pagava os estudos, a comida e os bilhetes para ir à terrinha ao fim-de-semana. Era tudo muito contado. Às vezes, tinha de comer uma fatia de pão com manteiga à noite para poupar.” Iniciou a carreira como treinador de guarda-redes num clube das divisões regionais de Portalegre, o Portus Alacer, onde foi promovido a treinador principal. Os observadores do Benfica gostaram do seu trabalho e acabaram por recrutá-lo para as escolinhas. Em 2012, saiu do Benfica para a Ni-
géria. Primeiro foi contactado, via Facebook, pelo antigo craque nigeriano Jay-Jay Okocha, que tinha um projecto na Índia. Mas a proposta do Kaduna United (Nigéria) foi mais aliciante.
Ver miúdos a jogar no capim
No início, a experiência foi “espectacular”. “Montei a equipa como quis e ganhámos todos os jogos da pré-época. Mas houve mudança de governo e de direcção e os novos dirigentes quiseram reduzir-me o salário. Já estava pronto para regressar a casa quando fui abordado por um empresário que me propôs andar de cidade em cidade a escolher os melhores jogadores para o The Elite Group, um grupo de empresários de futebol. A Nigéria é o Brasil de África. Dás um pontapé numa pedra e encontras um bom futebolista. Cheguei a ir ver miúdos a jogar no meio do capim. Ganhei muito dinheiro com esse projecto.” Esse grupo decidiu investir no Estrela de Portalegre. “Os nigerianos compraram os direitos desportivos do Estrela e eu fiquei à frente de tudo: era gestor, treinador e motorista. A ideia tinha potencial. Ganhava menos do que na Nigéria, mas estava perto da família e dos amigos na minha cidade, conveniente numa altura em que a minha mulher estava grávida. No primeiro mês, o dinheiro chegou. Mas, no início do campeonato, um dos membros da direcção do grupo saiu e a torneira secou. Começámos a penar.”
Sérgio Traguil e a sua família tornaram-se no suporte financeiro de todos os jogadores que tinham vindo. “Tive de vender ao preço da uva mijona os carros de sonho que tinha comprado – um BMW M3 e um X5 – para matar a fome a muita gente. Cheguei a tirar do abono da minha filha para pagar aos jogadores, ir à Cáritas e à Segurança Social pedir comida para eles, a não ter como pagar a minha própria renda. Como eu é que tinha trazido os nigerianos caiu tudo em cima de mim. Sobrevivi com o apoio da minha mãe e dos meus sogros.” Deu a volta à situação quando foi para um dos melhores clubes ganeses, o Hearts of Oak, em que terminou em 3º lugar, a três pontos do campeão. E agora está no Kabuscorp, a equipa do general Bento Kangamba. Sérgio Traguil explica como é a sua relação com o presidente: “Não existe ninguém em Angola que ajude tanto as pessoas como ele. Até pode vir a despedir-me, mas não vou mudar a minha opinião. Apesar da riqueza enorme, é uma pessoa muito simples, divertida e humana. É muito importante para o MPLA e tem um grande carisma. E alia isso ao conhecimento futebolístico. Ainda assim, não interfere nada com o meu trabalho. Sentase no banco, sim, mas a única vez que abriu a boca foi para me chamar maluco porque estávamos a ganhar 3-0 e eu estava a puxar pelos jogadores para marcarmos mais.”
VIVEU UM DRAMA EM PORTALEGRE: “ATÉ TIREI DO ABONO DA MINHA FILHA PARA PAGAR AOS JOGADORES”