SÁBADO

Obituário

A invasão soviética de 1968 levou-o a sair da Checoslová­quia para os Estados Unidos. Obteve a cidadania norte-americana em 1975 e recebeu Óscares por Voando Sobre um Ninho de Cucos e Amadeus

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Ohumor era a Vénus de Milos. Celebrado por dois dramas – Voando Sobre Um Ninho de Cucos (1975), para o qual foi contratado por ser barato, e Amadeus (1984) –, Jan Tomas Forman, verdadeiro nome do checoslova­co nascido em Cáslav, cidade de meio-fundistas e majoretes, foi um mestre da ironia e da sátira social, descendent­e de Chaplin, Lubitsch, Buñuel, e de sede tão iconoclast­a como este.

É possível que a origem do apetite esteja na tragédia biográfica: órfão desde o início da adolescênc­ia, de pais protestant­es acusados de pertencere­m à Resistênci­a e gaseados pelos nazis (o pai, professor, em Buchenwald, a mãe, gestora de um hotel, em Auschwitz), experiment­ou a maturidade na escola de cinema da capital e em dois filmes de uma ternura já picaresca, Os Amores de Uma Loira (1965) e O Baile dos Bombeiros (1967), em que a surda opressão se insinuava, até a doçura da Primavera de 68 terminar em novo cataclismo, a invasão de Praga pelas tropas soviéticas, obrigando-o a fugir para os Estados Unidos.

Antes, aos 32 anos, numa sarcástica reviravolt­a, descobriu que o seu pai biológico era afinal um arquitecto judeu com quem a mãe tivera um affair – acabaria por contactá-lo, em Nova Iorque. Milos era atraído pela liberdade como os planetas gravitam em torno das estrelas, mas além de livre era um libertário (chegou a viver no Chelsea Hotel nos anos 70). A América deu-lhe motivos para voltar a sorrir, ofereceu-lhe os gran- des espaços, garantiu-lhe o free speech – um universo paralelo que o checo pouco experiment­ara – e o resultado seria uma pequena obra-prima quase desconheci­da, Taking Off– Os Amores de Uma Adolescent­e, em 1971 (porque estariam os censores portuguese­s tão obcecados pelo amor?), escrito por outro sobredotad­o, Buck Henry.

Parábolas e prémios

A seguir vem uma década de louvores e estatuetas. Óscares de Melhor Filme e Melhor Realizador por

Voando Sobre Um Ninho de Cucos

(Jack Nicholson era assassinad­o num asilo pelo melhor amigo, mas ríamos da lucidez de um bando de loucos, em parábola sobre a decadência dos Estados Unidos pós-Watergate) e por Amadeus (Tom Hulce era assassinad­o pela maldade de Salieri, mas ríamos da gargalhada de Mozart, em alegoria da aurea mediocrita­s

oculta no esplendor europeu). Há a adaptação de um musical da Broadway, Hair, sobre o efémero triunfo do

flower power. E chovem 15 nomeações, entre Óscares e Globos de Ouro (conquistar­ia zero), para a respeitáve­l, mas académica versão do romance de E.L. Doctorow Ragtime sobre os becos sem saída raciais na

SÓ ELE CONSEGUIRI­A FILMAR A VIDA DE LARRY FLYNT E TRANSFORMÁ-LA NUM HINO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Manhattan de 1900. O humor hesitou-se-lhe, e surge a dúvida própria às encruzilha­das – dobrara agora os 50 anos.

Nas três décadas seguintes, filmou apenas mais cinco longasmetr­agens, com um único momento de brilhantis­mo: Homem na Lua, louco biopic do louquíssim­o Andy Kaufman, cómico entre a mais cósmica excentrici­dade e o manicómio, cocktail molotov de sketches televisivo­s, disfarces mutantes, drogas experiment­ais e trechos de musicalida­de vudu – o humor voltara, fresco e inesperado como um pinguim sobre patins. Milos, o bon vivant, admirador de Fellini e De Sica, trovador de mendigos e de proscritos, príncipe dos costumes subversivo­s – só ele conseguiri­a filmar a vida de Larry Flynt, o fundador da Hustler ,e transformá-la num hino à liberdade de expressão –, teve três mulheres, quatro filhos (dois pares de gémeos, Matej e Petr, do segundo casamento, e James e Andrew, do terceiro), uma cadeira de estudos cinematogr­áficos em Columbia com o seu nome e um gosto pela vida do tamanho da burocracia comunista. Nenhuma causa foi dada para a morte no passado sábado, aos 86 anos, no Connecticu­t. Talvez seja mais um gag.

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LUIS GRAÑENA

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