Bruno Faria Lopes
PRIMEIRO: “HÁ UMA FOLGA!” Em mais de 40 anos de democracia nunca tivemos outra coisa que não défice orçamental – por isso é natural que a perspectiva de um défice 0%, ou de um excedente (palavra nova!), seja uma mudança que gera perplexidade. Uma das manifestações dessa perplexidade é a repetição de que se podia ter gasto a folga orçamental do ano passado em vez de deixar o défice cair além do previsto. É verdade que há uma “folga” superior a 1.000 milhões de euros face ao previsto – mas num País com 126% de dívida pública não é verdade que haja folgas enquanto houver défice numa conjuntura económica muito favorável.
SEGUNDO: “Centeno mudou de repente!” O ministro das Finanças aparece de repente como a criatura que fugiu ao controlo do criador – como alguém que se gasparizou da noite para o dia, que corre em pista própria a caminho de um posto na Comissão Europeia. Quem diz isto andou distraído. Abanado pelo caso Caixa/Domingues, o ministro teve o seu ponto de viragem no fim de Março do ano passado com a divulgação do défice de 2% em 2016. Os números, os do défice e os da economia, projectaram Centeno. Daí ao “Ronaldo das Finanças” foi um passo. E até às entrevistas como a dada à Reuters em Maio do ano passado – em que afirmou preto no branco que ia usar todas as folgas para abater à dívida – foi outro passo. Estava-se a ver que, apesar de a margem orçamental ser superior, a margem da esquerda para as suas exigências ia diminuir. O ministro das Finanças vem do Banco de Portugal e de Harvard – estranho, de facto, foi pensarmos que defenderia outro caminho genérico que não este.
TERCEIRO: “Este défice zero é à custa dos serviços públicos!” Sim e não. A redução do défice está a ser feita muito por via de dois efeitos conjunturais que o Governo não controla: o crescimento da economia e os juros extraordinariamente baixos. É daqui que veio cerca de 60% da consolidação do ano passado, diz o Conselho das Finanças Públicas. Por outras palavras: pode estar a haver contenção de despesa (que cresce a um ritmo menor do que a economia), mas não está a haver corte de despesa (a não ser em juros). Mas e as carências no SNS e nas escolas?, ouço o leitor per- guntar. Existem, sim – na Saúde a pressão é enorme. Atacar essas carências depende das escolhas políticas que o Governo fizer dentro da restrição orçamental que escolhe: repor rendimentos mais depressa vs. gastar mais em Saúde, por exemplo, ou baixar IVA aos restaurantes vs. gastar mais em Saúde. Chama-se a isto custo de oportunidade, conceito ausente da política quando esta apresenta medidas simpáticas.
QUARTO: “O défice zero é porque a ortodoxia europeia quer!” É verdade que a Europa quer – há uma orientação para continuar a reduzir o défice (o nominal e o estrutural, que exclui o efeito da conjuntura). Mas quem governa um País com um rácio de dívida de 126% do PIB – e pequena dimensão no contexto europeu – também deve querer excedentes orçamentais moderados quando herda um défice baixo e uma boa conjuntura. Veja-se no gráfico abaixo que a nossa trajectória não se destaca assim tanto na Europa – a conjuntura brilha para todos. Eliminar o défice pode significar uma restrição orçamental mais apertada. Mas, na nossa circunstância colectiva, é sobretudo uma tentativa de garantir a segurança do financiamento da República perante choques futuros – e de crédito político nas capitais europeias que contam.
QUINTO: “A dívida portuguesa vai ser reestruturada de qualquer forma.” Vai? Se houver uma crise titânica, talvez. Aí estaremos todos em muito maus lençóis. De resto é muito difícil perspectivar tal coisa – sobretudo se o rácio continuar a descer de forma visível. É aí que queremos estar.