OS TERRENOS VENDIDOS, A PJ E A PÁSCOA NO CANADÁ
O EX-LÍDER DO BES CONSEGUIU MAIS DE 1 MILHÃO DE EUROS COM A VENDA DOS TERRENOS DA MÃE
A vida do antigo homem-forte do BES caído em desgraça é sinónimo de uma sucessão de processos que envolvem muitos milhões de euros
Todos os passos dos negócios imobiliários foram discretos. O primeiro aconteceu em Novembro de 2017. O segundo já em Fevereiro deste ano. O valor total da operação: 6 milhões de euros. Telegraficamente, é assim. Mas esta não é naturalmente a história toda. A operação teve dois pivôs profissionais, um deles a imobiliária Cobertura, que recentemente passou a integrar a consultora internacional JLL, com escritórios em Lisboa, no Porto e em Cascais. Por sinal, é neste último concelho que ficam os dois terrenos vendidos. Têm 3.127 e 2.095 metros quadrados e possuem algo que os valoriza – e muito: as licenças de construção passadas há vários anos pela Câmara de Cascais no selecto Parque da Gandarinha, junto à Boca do Inferno.
A primeira transacção foi a do “Lote 11”, que acabou por só ser identificada pela Polícia Judiciária (PJ) já depois de concretizada. Mas o Ministério Público ainda foi a tempo de arrestar (uma espécie de apreensão) a parte do dinheiro – 700 mil euros – que coube a um dos vendedores que está envolvido em vários processos-crime: Ricardo Salgado. Já na segunda operação, o “Lote 12”, o antigo banqueiro corrigiu o passo dado em falso e o cheque de 469.250 euros, emitido pelo comprador para lhe pagar, foi logo passado à ordem da sociedade de advogados de que é sócio Daniel Proença de Carvalho, a Uría Menéndez.
A justificação oficial? Tratou-se da liquidação de “honorários” que “foram já prestados e facturados” a Ricardo Salgado.
O início desta rocambolesca história é apenas mais um episódio que faz parte da nova vida do antigo banqueiro caído em desgraça devido à derrocada do BES e ao alegado envolvimento em vários processos e em crimes de corrupção, burla, branqueamento de capitais, fraude fiscal qualificada, falsificação de documentos e abuso de confiança. Só no processo principal do caso
BES, que está a ser investigado desde 2014 no Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), Ricardo Salgado e a Sociedade de Administração de Bens Pedra da Nau, SA (que divide com a mulher, Maria João) foram dois dos alvos privilegiados de uma megaoperação de arresto de bens que abrangeu inicialmente (em Maio de 2015) 273 prédios e 316 fracções.
A luxuosa moradia de Ricardo Salgado em Cascais continua arrestada, com o MP a justificar a decisão com a necessidade de garantias que possam no futuro tapar (em parte) o rombo provocado pelos alegados negócios fraudulentos do grupo BES/GES. Este cálculo inicial do DCIAP, que consta na Conservatória do Registo Predial de Cascais, refere um prejuízo de 1,835 mil milhões de euros. No entanto, mesmo com centenas de bens provisoriamente nas mãos da justiça (inclui até boa parte da reforma mensal de 39.162 euros do banqueiro), Ricardo Salgado conseguiu vender os dois terrenos situados na zona privilegiada onde vive em Cascais e que confrontam a sul com a moradia das suas duas irmãs.
A explicação é simples: o arresto do DCIAP não apanhou os bens que fazem parte da herança da mãe de Salgado, Maria Cohen Espírito Santo, que morreu a 28 de Dezembro de 2010 sem deixar testamento. Os seus cinco filhos demoraram anos a fazer o processo de partilhas dos bens.
A EQUIPA ESPECIAL NOMEADA PARA OS PROCESSOS BES/GES VIGIOU SALGADO NO TERRENO
Com os recentes negócios imobiliários, Ricardo Salgado ficou um pouco mais aliviado na casa de Cascais onde se refugia dos mirones e dos paparazzi de ocasião, da atenção dos jornalistas, dos interrogatórios, das buscas, das apresentações periódicas às autoridades e também do burburinho da elite. Só que nem sempre isso chega. Na última Páscoa, o ex-banqueiro e a mulher fizeram 5.700 quilómetros até Toronto, no Canadá, para visitar o filho mais velho, Ricardo (47 anos), a nora Rita Sousa Tavares (filha de Miguel Sousa Tavares) e os três netos.
Salgado cantou na missa
No domingo, dia 25 de Março, na véspera da partida, de avião, o antigo líder da família Espírito Santo deixou para trás os muros rosa-pálido e a vegetação que lhe rodeia a moradia e foi à capela que se encontra nas imediações. Maria João, a mulher, acompanhou-o. A irmã Mary Salgado também é assídua na ida às missas de domingo, bem como outros membros da família de cerca de 400 pessoas. “Toda a gente se cumprimenta, uns com um olhar, outros com um sorriso, uma palavra, um aperto de mão, um beijo”, diz à SÁBADO o padre Avelino Alves, que ali celebra as missas há 20 anos. Mas o sacerdote também reconhece que há momentos que nem a saudação da paz, durante a celebração religiosa, consegue resolver. Por exemplo, as guerras entre Ricardo Salgado e os Ricciardi. Aos 73 anos, o antigo Dono Disto Tudo permanece de costas voltadas para António, o pai do primo José Maria. Sobretudo desde que foi noticiado em Outubro de 2015 que o patriarca dos Ricciardi, já com quase 100 anos, o incriminou junto das autoridades suíças em mais uma investigação que decorre ao universo BES/GES. O padre ainda tentou juntar a família desavinda, mas nada feito. “O dr. Ricardo ouviu-me com toda a humildade quando lhe disse que até aos inimigos devemos saudar, ainda mais quando está em causa um homem com a integridade, dignidade e probidade do comandante Ricciardi, mas não consegui convencê-lo. Continua sem o cumprimentar.” Mesmo na igreja, são ainda estes silêncios e olhares entre os Espírito Santo que dizem mais do que as palavras. E Salgado é o homem que agora dá mau nome aos apelidos. “Já o encontrei mais triste e amargurado, mas nunca destruído”, garante o padre.
Quando terminou a missa das 13h de 25 de Março passado – Salgado comungou, cantou e rezou, como é habitual –, o ex-banqueiro dirigiu-se à sacristia para falar com Avelino Alves. Foi durante esta conversa que o antigo homem-forte do BES lhe desejou uma boa Páscoa e lhe anunciou que no dia seguinte ia viajar. Só regressou do Canadá numa quinta-feira à tarde, a 5 de Abril, um dia marcado pela ordem de prisão do antigo presidente do Brasil, Lula da Silva. Em termos legais, a viagem ao estrangeiro teve de ser comunicada ao MP e ao juiz de instrução Carlos Alexandre, uma vez que Salgado já foi acusado na Operação Marquês e é arguido nos casos Monte Branco e BES.
Apesar disso, a vigilância judicial que visa o ex-banqueiro não é o que já foi. Ricardo Salgado deixou há muito a prisão domiciliária, não é seguido e nem sequer está sob escuta. Não foi sempre assim. Uma das justificações para criar, no fim de 2016, a equipa especial dos casos BES, que está sob as ordens do procurador José Ranito e é composta por elementos da PJ, Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, PSP e GNR, foi porque era preciso avançar com cerca de 20 escutas telefónicas. E porque o MP suspeitava que Ricardo Salgado continuava a falar com vários ex-altos quadros do BES. As vigilâncias fizeram-se, mas a suspeita nunca terá passado disso mesmo.
PJ trava dinheiro para Proença de Carvalho
Agora, o cerco das autoridades é sobretudo processual e financeiro e foram estes novos tempos que levaram Salgado e a família mais directa a tomarem a decisão de venderem património que não estava arrestado. A 29 de Novembro de 2017, as irmãs Mary e Ana Maria deslocaram-se ao centro de Lisboa e entraram no cartório notarial de Frederico Soares Franco, um dos sobrinhos do empresário Filipe Soares Franco, o ex-presidente do Sporting que dirigiu a construtora Opway (ligada ao grupo BES/GES). Entre os vendedores, que se juntaram no terceiro andar do nº 21 da Av. Fontes Pereira de Melo, estavam outras duas mulheres que tinham procurações para poderem fazer o negócio: Maria João representou o marido Ricardo Salgado e Vanessa Salgado da Costa, vogal do
Q Conselho de Administração da Fundação Ricardo Espírito Santo Silva, apresentou-se mandatada por João Salgado, o irmão do ex-banqueiro que vive há anos junto à Praia do Flamengo, no Rio de Janeiro, Brasil. Os últimos vendedores presentes na escritura do lote 11 foram Bárbara e João Carlos, os dois filhos de António, o irmão de Salgado que morreu em Novembro de 2011.
Segundo a escritura pública de compra e venda a que a SÁBADO teve acesso, o primeiro negócio imobiliário rendeu um total de 3,5 milhões de euros, tendo cabido a Ricardo Salgado 700 mil euros (o mesmo valor ficou para cada irmão vivo e 350 mil para cada um dos dois sobrinhos). Todos os pagamentos foram feitos em cheques individuais do BCP entregues por um advogado que representou Rogelio Sola, um empresário com morada em Cascais e dupla nacionalidade de El Salvador e dos EUA. Curiosamente, a mudança de dono da propriedade não foi feita no registo predial de Cascais, mas numa conservatória a mais de 350 quilómetros, no Norte do País, em Santo Tirso.
Tudo parecia correr bem até o cheque de Salgado ter sido depositado na conta bancária da mulher. A súbita entrada do dinheiro levou o banco a alertar a Unidade de Informação Financeira (UIF) da PJ, que comunicou o caso ao procurador José Ranito. De imediato, o MP travou a saída do dinheiro que já tinha como destino as contas da filha de Ricardo Salgado (vive na Suíça) e do escritório de advogados Uría Menéndez, controlado em Portugal por Proença de Carvalho – o filho Francisco e o advogado Adriano Squilacce são a parte visível da defesa de Salgado nos processos crime do MP, nos processos intentados por lesados do BES e nos inquéritos de contra-ordenação do Banco de Portugal. Neste último caso, Salgado já é arguido em quatro casos distintos: o BES Angola; as filiais do BES no estrangeiro; a ESI e, recentemente, a Eurofin. Coincidência ou não, poucos meses depois do arresto do dinheiro do primeiro negócio, a família Salgado avançou para a segunda venda de terrenos prontos a construir em Cascais. Os dados consultados pela
SÁBADO nas conservatórias do Registo Predial de Cascais e de Almodôvar (a compra do lote 12 foi registada nesta cidade alentejana) revelam que o negócio ocorreu a 1 de Fevereiro deste ano e que a holandesa Valerie Staleman (com morada na Holanda) foi a compradora. O negócio foi formalizado no mesmo notário de Lisboa e com a presença dos mesmos vendedores. Ou seja, Salgado voltou a fazer-se representar pela mulher. Esta venda rendeu menos dinheiro que a primeira, 2,5 milhões de euros, conforme atesta a escritura de compra e venda a que a SÁBADO teve acesso. Assim, cada um dos irmãos da família Salgado recebeu um cheque de 469.250 euros (a imobiliária que intermediou a transacção ficou com 153.750 euros+IVA) e a parte de Salgado foi passada em nome do escritório do advogado Proença de Carvalho, conforme registado no contrato notarial.
A escrever as memórias num rés-do-chão
Em Cascais, onde o último banqueiro do clã nasceu a 25 de Junho de 1944, a venda dos terrenos já é comentada num circuito muito restrito que está há muito contaminado pelo ambiente de suspeição. A nata da sociedade que antes bajulava Ricardo Salgado, agora evita-o. Já não é um deles. Desacreditado num meio que vive em parte das aparências, em público Salgado tenta de forma fleumática, como nos tempos áureos do BES e até durante os interrogatórios filmados a que foi sujeito, não deixar transparecer que isso o afecta. Mas é notório que está isolado. “Evitam-no imenso, se puderem disfarçam que não o vêem. Foi excluído dos convívios. A mulher costumava passear pelo paredão do Estoril, mas hoje não a vejo”, diz à SÁBADO uma aristocrata da zona.
Mesmo que já não se verifiquem episódios como o bater de talheres num restaurante do Guincho quando o ex-banqueiro lá entrou (noticiado pelo jornal i em Julho de 2015), Salgado continua a ser apontado em surdina. “As pessoas de Cascais criticam o facto de ele circular de vez em quando nos melhores restaurantes, como se nada fosse. Já o vi no buffet do Hotel Palácio Estoril, a almoçar com os advogados,” diz outro elemento da elite local que pede para não ser identificado. Quando saiu do BES em 2014 e montou o escritório neste luxuoso hotel – instalou-se durante dois meses em duas salas contíguas –, os horários passaram a não ser tão rígidos como nos tempos no BES, em que acordava às 6h, chegava ao banco às 8h e regressava a casa às 20h.
O EX-BANQUEIRO E LÍDER DO BES VAI EDITAR UM LIVRO DE MEMÓRIAS ATÉ AO FIM DESTE ANO RICARDO SALGADO FOI VISITADO POR MUITOS AMIGOS NESTE HOTEL DO ESTORIL
No hotel, entrava entre às 9h e às 10h e saía ao fim da tarde. Ao almoço, pelas 13h, descia ao buffet no terraço coberto, com vista para a piscina, para fazer uma refeição frugal e conversar. “Vinham cá muitas pessoas falar com ele, além dos advogados de defesa, empresários, políticos e jornalistas. Aqui sentia-se apoiado”, diz à SÁBADO uma fonte do hotel. Depois, as visitas tornaram-se menores e Ricardo Salgado mudou-se para um escritório na Rua de Macau, perto do Casino Estoril e do restaurante Jackpot, onde chegou a almoçar.
É também em Cascais que Salgado se encontra de dois em dois meses com o antigo colega de faculdade e testemunha abonatória que tem usado nos processos, Eduardo Catroga. Nos últimos tempos, estiveram em Santarém, no Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão onde decorrem os processos de impugnação das multas aplicadas pelo BdP. No hall do tribunal, o ex-chairman da EDP, que foi ministro das Finanças, presenciou um protesto de um lesado do BES. “Apareceu lá um fulano que fez uns comentários, de uma forma não muito desabrida”, diz à SÁBADO. O economista João Poças Esteves, co-autor do livro Caso BES: O Impacto da Resolução na
Economia Portuguesa, recorda que viu Ricardo Salgado mais abatido quando foi constituído arguido na Operação Marquês, em Janeiro de 2017, mas garante que é ainda uma referência para muitos. “É procurado por amigos e outras pessoas para dar opiniões. É alguém que tem boas ideias e que vale a pena ouvir para tomar decisões.” Salgado continua a vestir-se com impecáveis fatos escuros, pulôver e gravata, mas os casos judiciais e a idade avançada já se impõem à memória colectiva do poder que teve. Mesmo quando sai e entra em casa num Mercedes Benz preto, conduzido por motorista. É na mansão de Cascais que almoça e janta quase sempre. Não tem sido visto no exclusivo clube Turf, nem na associação do Grémio Literário, locais que frequentava antes da queda do BES. As viagens ao estrangeiro, de início negadas pelo juiz Alexandre, acontecem agora pontualmente, sobretudo para visitar, na Suíça, a filha Catarina, que o próprio garantiu ser quem lhe pagava boa parte das contas.
Depois de arrendar um pacato rés-do-chão em Cascais, com luz natural, para trabalhar nas defesas dos processos, é também ali que está a ultimar o livro de memórias, que terá mais de 500 páginas e deverá ser lançado no fim deste ano. É a sua verdade, escrita sobretudo a lápis e esferográfica, uma vez que o ex-banqueiro nunca usou computador (nem sabia enviar emails quando dirigia o BES). O primo Michael de Mello diz à SÁBADO que já teve oportunidade de ler um excerto da obra: “Exclusivamente a parte que me diz respeito, para assegurar que estava factualmente correcta. Sou amigo dele desde sempre e continuo a ser. E também dos meus outros primos.” O refúgio do clã na Comporta, das casas rústicas de telhados de colmo com vista para os helicópteros a voarem com convidados ilustres, está também em convulsão. Salgado continua a ir lá uma vez por mês, mas é certo que a herdade de 12.500 hectares terá de passar para novos donos. Mas só se, e quando, o MP deixar.