A EQUIPA-SOMBRA E O ADVOGADO DESPEDIDO
O APARTAMENTO ALUGADO EM 2015 POR JOSÉ SÓCRATES CUSTA 1.800 EUROS/MÊS
Énuma espécie de pista larga, a perder de vista para o azul do Tejo, que um acusado de 31 crimes de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais faz com frequência as corridas matinais. O fato-de-treino e a camisola suada no peito são uma imagem recorrente de José Sócrates, sobretudo desde que há dois anos o ex-primeiro ministro se mudou para um apartamento de luxo, com 100 metros quadrados, alugado em 2015 a um investidor chinês por 1.800 euros/mês.
A exclusiva área residencial da zona sul do Parque das Nações transmite tranquilidade. À frente, há barcos atracados na marina, nas laterais, são vários os equipamentos de fitness montados na rua, existe um parque infantil, vêem-se famílias em passeio descontraído e um movimento contínuo de praticantes de jogging. Como Sócrates, que vai e volta numa passada certa, sozinho e compenetrado e muitas vezes de óculos escuros. Já esteve mais magro, mas isso é apenas um pormenor. Por vezes, fala ao telemóvel e acede a tirar selfies se alguém o aborda. “É simpático e disponível”, diz um comerciante local à SÁBADO pedindo para não ser identificado. Terminado o treino, normalmente recarrega baterias numa das mesas mais recatadas da marginal. Apesar do luxo, à porta de casa não tem nada que se assemelhe ao restaurante Il Gattopardo, o seu favorito, onde terá feito 33 refeições entre 2013/14 alegadamente pagas pelo amigo Carlos Santos Silva (numa delas gastou 715 euros), segundo concluiu a investigação da Operação Marquês. Mas Sócrates já voltou àquele restaurante depois da detenção e da acusação do MP. A última vez que ali fez uma refeição à la carte , do chefsiciliano Michele Bono, foi no início deste ano, segundo apurou a SÁBADO.
É evidente que o roteiro gastronómico de Sócrates – e tudo o resto – levou um encontrão do tamanho do mundo por causa do processo judicial de que foi alvo. Já não vai há seis meses ao Solar dos Presuntos comer aquilo de que gostava tanto: as pataniscas de bacalhau e a massada de garoupa. Os restaurantes Gambrinus, O Poleiro, Faz Figura e o japonês de fusão Yakusa também parecem ter deixado de fazer parte do seu roteiro gastronómico. Agora, no dia-a-dia, contenta-se com pratos despretensiosos por 10 euros. Mas continua ecléctico, assevera o dono de um restaurante das imediações da casa onde chegou a ser noticiado que vivia com Lígia Correia, ex-funcionária do PS, a alegada namorada com quem raramente é visto em público: “Ele aparece sozinho e frequenta todos os restaurantes da zona, não tem um favorito.” Conclusão: Sócrates tanto pede um hambúrguer, como favas guisadas ou coelho à caçador, acompanhados por um copo de vinho tinto. Mas fá-lo quase sempre à hora certa: ao meio-dia, o melhor quando se quer evitar enchentes, curiosos e comentários em surdina que alguns clientes podem fazer se o virem.
Assim, se o restaurante tiver mais de cinco pessoas, não se senta e encomenda o almoço. Mas não fica à espera: pede que lho levem a um local mais sossegado nas imediações. E enquanto aguarda, aproveita para ler um livro ou o jornal que compra quase todos os dias – o Público.
“E ponto final, é o dia-a-dia que vemos”, sintetiza à SÁBADO um funcionário. “Não gosta que a gente ande em cima”, diz outro empregado, lembrando que nunca lhe fez qualquer pergunta limitando-se a agradecer as gorjetas. Um amigo político que o conhece há anos acrescenta sob anonimato: “Leva uma vida muito caseira. Frequenta locais públicos, mas tem menos vida social. Não tem uma visão de longo prazo, vai vivendo o dia-a-dia.” Afinal, o ex-governante tem apenas oficialmente uma subvenção vitalícia, uma reforma de político de 3.800 euros/brutos (cerca de 2.550 líquidos) que lhe entra nas
SÓCRATES CORRE DE MANHÃ NO PARQUE DAS NAÇÕES E DEPOIS LEVA O ALMOÇO PARA COMER EM CASA
contas bancárias. Ou seja, quase um décimo daquilo que ganhava em 2014 quando foi detido. Ainda assim continua a ter despesas e dívidas difíceis de explicar, como acontece com as centenas de milhares de euros que nunca pagou ao amigo Santos Silva (José Sócrates reconheceu que este lhe emprestou pelo menos meio milhão, mas o MP refere que os gastos são superiores a 1 milhão de euros).
O desentendimento com Araújo
Mesmo depois de ser detido, a única conta bancária de Sócrates continuou sob apertada vigilância do inspector tributário Paulo Silva. Em Janeiro de 2015, ainda na cadeia de Évora, o ex-primeiro-ministro contraiu um empréstimo bancário na CGD de 250 mil euros, mas o dinheiro evaporou-se quase de imediato, pois serviu para pagar despesas com cartões de crédito (105 mil euros), fazer uma transferência para a ex-mulher Sofia Fava (100 mil) e pagar 10 mil euros de honorários ao advogado João Araújo. Ainda durante esse ano, José Sócrates vendeu o carro (um Mercedes) e o apartamento da Rua Braamcamp, em Lisboa.
Na sua conta entraram quase 725 mil euros, que também se esfumaram rapidamente: foi liquidado o empréstimo de 250 mil euros à CGD; pagos outros 250 mil ao amigo Carlos Santos Silva; transferidos 57 mil euros devido a impostos atrasados; e outros 40 mil foram destinados a pagar as propinas de um dos filhos que estudava numa universidade norte-americana. Além disso, Sócrates avançou com o pagamento de 12.600 euros para pagar rendas de casa no Parque das Nações e recebeu retroactivos da pensão de 72 mil euros. Feitas as contas, e mesmo que a contabilidade não seja exaustiva, o saldo não ficou famoso.
Mas a grande mágoa de Sócrates nem sequer é o dinheiro, tem a ver com o facto de muitos amigos ou camaradas políticos se terem afastado. Isso aconteceu até com gente que o conhece há muitos anos, alguns deles com quem divide as alegadas culpas apuradas pelo MP na Operação Marquês. Por exemplo, Armando Vara. Durante o processo, os dois discutiram de forma muito violenta, ao ponto de terem estado vários meses sem se falarem. Só recentemente fizeram as pazes e voltaram a aproximar-se. Uma das razões do desentendimento terá sido a estratégia da defesa no processo, conforme Vara revelou a vários amigos próximos: é que Sócrates exige mandar. Na defesa dele e na de alguns outros arguidos. Recentemente, ocorreu até no processo uma baixa surpreendente: João Araújo, o advogado que inesperadamente apareceu a defender Sócrates depois de o ir buscar a Paris, em Novembro de 2014, para se entregar à justiça portuguesa. João Araújo tornou-se uma estrela mediática nos dias em que Sócrates esteve a ser interrogado pelo juiz Carlos Alexandre no Campus da Justiça, em Lisboa. Nesse sábado de manhã, identificou-se aos jornalistas como advogado estagiário (tem cédula profissional desde Outubro de 1977), confirmou que representava o ex-chefe de governo, mas depois corrigiu – só seria se ele quisesse e quando lhe passasse procuração. O jogo de palavras continuou quando revelou depois que tinha sido chamado por ele, para depois dizer que, afinal, até podia nem ter sido bem assim – “ou eu ter-lhe-ei ligado”. A meio desse dia, saiu do tribunal e disse que ia “ver as montras” e regressou “com os jornais para ler” – era o que fazia “todos os sábados”, vincou. Este sempre foi o seu estilo durante os anos em que defendeu José Sócrates. Só que depois de muitas discussões acaloradas em privado e ao telefone, João Araújo foi surpreendido pela decisão de Sócrates de o afastar. Isso concretizou-se em Fevereiro passado e deixou de rastos o advogado, segundo confidenciou a familiares e amigos. A acreditar nos registos das contas bancárias do ex-primeiro-ministro, que estão na Operação Marquês, o advogado recebeu de José Sócrates apenas 10 mil euros para pagar os honorários. À SÁBADO, o advogado desmente que tenha sido despedido. “Essa informação não corresponde à realidade, mas não vou alongar-me porque não posso falar dos assuntos que envolvam os meus clientes.” Certo é que, poucos meses depois de ser detido e quando ainda estava na prisão de Évora, Sócrates entendeu que tinha de ser ele a liderar a estratégia jurídica e pública da equipa de defesa. Uma defesa a cargo de uma espécie de plataforma-sombra que terá entrado em pleno funcionamento só quando Sócrates saiu da prisão no Verão de 2015. Uma fonte judicial contactada pela SÁBADO define assim o que poderá estar em causa só na parte do processo: “É preciso diferenciar quem manda na estratégia jurídica; quem escreve os recursos e outros documentos; e quem aparece como executor de tudo.”
Logo em 2015, ocorreram pelo menos duas reuniões em Leiria no escritório do advogado Vítor Faria, que defendia António Barroca, para acertar estratégias entre as defesas dos então principais arguidos no processo. Estiveram lá Castanheira Neves (o defensor do irmão de António, Joaquim Barroca, dois dos donos do grupo Lena), Miguel Esperança Martins (grupo Lena), Paula Lourenço (Santos Silva), Ricardo Candeias (do motorista de Sócrates), Pedro Delille e até Rui Patrício, o advogado que veio depois a representar Hélder Bataglia na Operação Marquês. Outros
ARMANDO VARA ZANGOU-SE COM SÓCRATES E CARLOS SILVA MANTÉM CONTACTOS REGULARES O EX-GOVERNANTE VIVE COM UMA REFORMA BRUTA DE DEPUTADO DE 3.800 EUROS POR MÊS
encontros do género, alguns bem mais restritos, continuaram durante meses, sobretudo entre as defesas de Sócrates, Armando Vara e o grupo Lena/Joaquim Barroca.
Quase tudo na defesa passa por Coimbra
Em Outubro de 2017, na sequência da acusação da Operação Marquês, os advogados de Sócrates voltaram a criticar violentamente o trabalho final do DCIAP. “A partir de hoje fica fixada a versão do MP, que não pode ajustar mais. Esta é a última e é sobre ela que vamos trabalhar. Estamos certos que deste amontoado de papel não restará folha sobre folha”, disse João Araújo, que com Pedro Delille esteve presente em Coimbra, cerca de uma semana depois, num fórum sobre a Problemática dos Prazos do Inquérito Penal. Um tema que já fora e continuou a ser objecto de numerosos recursos e críticas públicas da defesa de José Sócrates.
Esta iniciativa de discutir os prazos dos inquéritos coube à Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, mas foi acertada nos bastidores por Pedro Delille e o presidente da Comissão, Castanheira Neves, o advogado de Joaquim Barroca, o empresário acusado de, entre outros crimes, ceder as contas suíças para corromper o ex-líder socialista. Segundo o programa oficial do fórum, intervieram outros elementos com ligações directas ou indirectas à Operação Marquês, nomeadamente a antiga juíza do Tribunal Constitucional Maria João Antunes e a professora universitária Cláudia Cruz Santos, que já tinham colaborado com a defesa de Sócrates.
No primeiro caso, por diversas vezes, as defesas de Sócrates e também de Joaquim Barroca, tiveram vários “encontros de trabalho” com esta professora de Direito Penal da Faculdade de Direito de Coimbra que foi juíza do Tribunal Constitucional (TC), entre 2004/14, indica da pelo PS. Outro antigo assessor do TC entre 2007/14, o advogado Miguel Prata Roque (professor da Faculdade de Direito de Lisboa e actual secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros), foi mandatado por Sócrates para intentar em 2015 uma providência cautelar contra a Cofina (dona da SÁBADO) para travar a publicação de notícias sobre a Operação Marquês. Quanto a Cláudia Santos, também docente e investigadora do Instituto Jurídico da Faculdade de Direito de Coimbra, fez um parecer sobre os prazos do inquérito, considerando os mesmos como peremptórios e não indicativos. Ou seja, nos casos de especial complexidade como a Operação Marquês, a investigação deveria durar 18 meses com arguidos constituídos. Ainda antes de ser conhecido este parecer, um advogado amigo de João Araújo, João Nabais, surgiu em várias entrevistas e programas de televisão a repetir as principais conclusões de Cláudia Santos – sem citar o estudo. No fórum de Coimbra esteve ainda o penalista Germano Marques da Silva, sócio de Paula Lourenço, advogada de Santos Silva. E também José António Barreiros, que defende o ex-gestor da PT, Zeinal Bava. Exagerada ou não esta teoria da equipa-sombra de José Sócrates, foram sempre os advogados, primeiro João Araújo e depois Pedro Delille (é Araújo que sugere Delille a Sócrates como “o processualista”, ou seja, aquele que iria escrever a litigância que se previa), que apareceram oficialmente a dar a cara. Isso aconteceu em entrevistas ou conferências de imprensa e quando assinaram, pelo menos, 38 recursos, requerimentos, um incidente de recusa de juiz e um pedido de habeas corpus.
Neste último caso, e até hoje, a defesa centrou-se em seis grandes e complexas questões: as medidas restritivas da liberdade; o tempo do segredo de justiça e os prazos máximos do inquérito; as competências do Governo e do primeiro-ministro em decisões políticas; o impedimento do juiz Carlos Alexandre; a interconexão da Operação Marquês com os casos Monte Branco, GES/BES e PT; e a nulidade das escutas telefónicas. Não é preciso ser jurista para perceber que se tratou de um trabalho complexo e moroso traduzido em milhares de páginas escritas. Mesmo assim Araújo e Delille ainda tiveram tempo para tratar de outros processos complexos, como quando passaram a representar o empresário Carlos Marques envolvido num dos casos BPN. Ou depois na tentativa de extradição do empresário Raul Schmidt, que fugiu para Portugal e é suspeito na Lava Jato.
“Fazer aquilo que a defesa de Sócrates tem feito na Operação Marquês custará, a preços de mercado, nunca menos de uns 700 mil euros”, garante à SÁBADO um dos mais solicitados criminalistas portugueses que pede para não ser identificado. “Um bom advogado, com capacidade para fazer aquele trabalho, não custa menos de 300 euros/hora. E é tudo cobrado: o estudo, a elaboração da peça processual, o tempo passado em reuniões ou diligências com o cliente, os telefonemas, os km feitos, etc.”, garante a mesma fonte.
Outro advogado com vasta experiência de advocacia criminal acrescenta que cada recurso custará em média “20/30 mil euros”. Na Operação Marquês, como parte desta litigância versa temas semelhantes, “talvez fiquem por uns 15 mil euros”. Um terceiro especialista na área diz ainda: “Quando se analisa todos aqueles recursos é difícil não suspeitar que está ali muito trabalho, até pela originalidade do tema e que normalmente vemos em pareceres ou em escritos de gente das universidades. E cada um desses trabalhos nunca custa menos de 25 mil euros.”
UM COLÓQUIO JURÍDICO EM COIMBRA FOI COMBINADO COM A DEFESA DE JOSÉ SÓCRATES RUI PEDRO SOARES ACHA QUE O FUTURO POLÍTICO DE SÓCRATES SÓ DEPENDE DO PRÓPRIO
Além disto, Araújo e Delille ainda intentaram processos por difamação, exigindo avultadas indemnizações e constituíram-se assistentes em casos por violação do segredo de justiça. Só ao grupo Cofina, sobretudo à SÁBADO e ao Correio da Manhã, Sócrates colocou seis processos: uma providência cautelar para impedir a publicação de notícias sobre a Operação Marquês, três processos cíveis em que exigiu um total de 1,1 milhões de euros e dois processos-crime. Até agora, perdeu quase tudo (só um processo-crime ainda não acabou) e já gastou só em custas processuais e custas de parte (pagamentos à própria Cofina) um total de 38.117,40 euros, conforme referem as contas do escritório de advogados Carlos Cruz & Associados que representou a Cofina.
Em Março do ano passado, o jornal Público fez também outras somas que elevam os gastos totais para cerca de 55 mil euros: desde que foi detido, em Novembro de 2014, José Sócrates recebeu uma factura da justiça portuguesa de cerca de 17 mil euros, entre multas por os seus advogados terem ultrapassado os prazos legais para reclamarem das decisões judiciais e as taxas que teria de pagar por causa dos recursos que ia perdendo – até hoje, só conseguiu uma vitória com toda esta litigância. Tratou-se do recurso em que o juiz Rui Rangel (indiciado depois por vários crimes na Operação Lex) decidiu acabar com o segredo de justiça interno do caso Marquês. Durante esta longa batalha judicial até vários amigos de Sócrates já perceberam que há uma espécie de tema tabu nas conversas com o ex-primeiro-ministro: ouvem-no falar do processo sem fazerem perguntas. O ex-secretário-geral da UGT e hoje consultor da Altice, João Proença, confirma que têm apenas “conversas de amigos” e que os almoços não são “de conspiradores”. O deputado Renato Sampaio vê os jogos de futebol da selecção na casa de Sócrates, juntamente com os socialistas Fernando Serrasqueiro, José Junqueiro e Paulo Campos. O ex-ministro do PS Mário Lino diz que sentiu Sócrates revoltado há dois meses, mas que os tópicos de conversa foram os “livros e a política internacional”. A amiga Edite Estrela não comenta o caso à SÁBADO e a deputada Gabriela Canavilhas afirma: “A última vez que falei com ele foi por telefone, há uns meses. Senti a mesma determinação, convicção e força interior.” E a quem vaticina que Sócrates está morto politicamente, Rui Pedro Soares, presidente de Os Belenenses e amigo do ex-primeiro-ministro, conclui: “Depende da vontade dele, mas tem uma qualidade que nos últimos tempos caiu em desuso: é uma pessoa corajosa que não tem medo de ir contra a corrente.”