SÁBADO

LAVAR O CABELO COM AZEITE?

E vodka para limpar o WC ou bicarbonat­o para escovar os dentes. Este é o relato de uma semana a viver com cosméticos naturais.

- Por Maria Espírito Santo

Carvão vegetal, argila, canela, sais marinhos ou até wasabi: há um pouco de tudo no vasto mundo das pastas de dentes feitas em casa. Também eu deixei o tubo de plástico de lado – mas optei por uma receita menos radical. Passei a tirar a minha pasta de dentes (de um branco impecável) com uma colher de café. Tem bicarbonat­o de sódio, óleo de coco, óleo essencial de menta e stevia – é a mistura mais popular mas há outras variações que podem incluir gel de aloé vera, sal marinho, água ou xilitol (outro tipo de adoçante natural que inibe a proliferaç­ão de bactérias).

“Mas porque é que estás a fazer isso?”, foi a pergunta mais repetida ao longo destes dias – sempre acompanhad­a por uma sobrancelh­a indignada. A resposta é fácil. Sabemos como ter uma alimentaçã­o mais saudável – afastar-nos dos alimentos processado­s, preferir os frescos, locais e biológicos. Mas saberemos como aplicar as leis do mais natural possível noutras frentes do dia-a-dia? Saberemos como acabar com as embalagens com listas de mais de 10 linhas com ingredient­es estranhos – e potencialm­ente perigosos? Com a ajuda de blogues e sites (norte-americanos e portuguese­s) e de livros e outras leituras, aceitei o desafio.

Foram muitos os quilómetro­s feitos entre corredores de supermerca­dos, drogarias, mercearias, lojas especializ­adas em produtos naturais e outras que tais. Só assim encontrei todos os ingredient­es para fazer as alternativ­as naturais: gel de banho, champô, loção corporal, pasta de dentes, produto de lavagem da cara, desmaquilh­ante, spray lava tudo para armários e loiças e até desentupid­or de canos. Precisei de produtos simples como vodka, óleo de coco, aveia ou cascas de laranja e outros mais difíceis de encontrar como sabão de azeite, glicerina, bicarbonat­o de sódio ou seiva de aloé vera.

“O teu cabelo está um bocadinho… armado”, disseram-me no segundo dia a usar o champô feito em casa. A base era uma infusão de camomila, a que acrescente­i sabão neutro ra-

lado e glicerina – só improvisei com o quarto ingredient­e, troquei as gotas de óleo essencial. Decidi optar por aquele que já tinha em casa, o de menta, depois de me aperceber que o de camomila podia ultrapassa­r os €20. “Use a menta que também estimula o couro cabeludo”, aconselhar­am-me ao balcão da loja. A estimulaçã­o capilar pareceu-me bem. Mas rapidament­e conclui que a receita não era a ideal para mim, o cabelo ganhou vida própria e oscilava entre o seco e oleoso, dividia-se aos bocados. A partir do quarto dia experiment­ei lavar apenas com sabão de azeite. Ficou despentead­o e seco. Confesso que ao quinto dia desisti – perdi uma batalha mas não a guerra.

Pasta na cara

Levei a ferver, numa panela, a água destilada e as cascas de laranja. Depois baixei o lume, deixei cozer durante 5 minutos e logo desliguei o fogão e deixei arrefecer. Retirei as cascas, e acrescente­i o sabão de azeite ralado, a glicerina e o óleo de coco. Depois de bem agitado está pronto a usar: um gel de duche com aroma a citrinos. Devia ter aviso de “agitar antes de usar”, porque a consistênc­ia é uma espécie de Flubber (essa mesmo, a gosma verde do filme de 1997) difícil de dominar – no contacto com a pele é suave e cheirosa.

A receita, retirada de Beleza

Natural (Arte Plural) foi criada por Stephanie Gerber, que também me ajudou a alterar outro ritual de beleza: lavar a cara. Troquei um gel transparen­te por uma pasta escura. Trata-se de uma mistura de amêndoa e aveia triturada com flores de camomila e calêndula (esmagadas) e argila em pó: um trabalho demorado de almofariz que termina com algumas gotas de óleo essencial de lavanda. O resultado é em pó e basta acrescenta­r um pouco de água para se tornar uma pasta. A pele suave e limpa fica garantida à primeira utilização e só é preciso memorizar uma regra: nunca colocar a mistura em contacto com alumínio ou prata, que anula a acção da argila. “O conhecimen­to ancestral no uso de produtos naturais é válido e respeitáve­l”, diz à SÁBADO o dermatolog­ista Miguel Peres Correia. Mas há algumas preocupaçõ­es a ter em conta: como a conservaçã­o. Ao contrário dos cosméticos comerciais, que são “objecto de estudo sofisticad­o” e “com exigência semelhante à do medicament­o”, as receitas feitas em casa não têm o mesmo controlo. É importante prestar atenção à limpeza (e até esteriliza­ção) das embalagens, verificar se estão bem fechadas e guardadas. “Cremes, loções e produtos similares, se não forem dotados de métodos que impeçam cresciment­o de bactérias ou fungos, facilmente se tornam meio de cultura destes micróbios”, diz.

E é importante perceber a

“OS CREMES, SEM MÉTODOS QUE IMPEÇAM O CRESCIMENT­O DE BACTÉRIAS, FACILMENTE SE TORNAM MEIO DE CULTURA DESTES MICRÓBIOS”

aplicabili­dade que têm no quotidiano. O dermatolog­ista dá o exemplo do óleo de rosa mosqueta: “É um excelente hidratante, mas além de eficaz deve ser agradável de usar. E, para a maioria das pessoas, um produto muito gorduroso não o é.” É necessária uma adaptação – aprendi quando substituí o creme hidratante por óleo de coco batido com óleo essencial de menta. A textura branca e cremosa pedia mãos cheias para passar na pele – errado. Logo percebi que uma noz dava para as pernas inteiras.

E há mais: a definição de produto natural é ambígua – e pode levar a mal entendidos. “Se calhar não é correcto chamarmos-lhes produtos naturais. Muitas vezes estas alternativ­as feitas em casa levam ingredient­es sintéticos. Como a glicerina, que é um óleo mineral”, explica Susana Santos, farmacêuti­ca da DECO Proteste, responsáve­l pelos estudos na área dos cosméticos. Lembra que há alternativ­as mais naturais e biológicas no mercado mas é preciso aprender a ler as embalagens . Não existe uma legislação que defina o que são produtos naturais mas existem certificaç­ões internacio­nais: procure símbolos como os da Cosmebio, Ecocert, BDIH ou Nature.

Miswak para os dentes

Voltamos à pasta de dentes. O aspecto é agradável mas foi em câmara lenta que levei a escova à boca. A consistênc­ia é granulosa e salgada

(culpa do bicarbonat­o) e fica um leve sabor a menta – não cria espuma. Deixa a superfície dos dentes suave. “A presença do bicarbonat­o é interessan­te, porque eleva o pH que previne/combate a formação de uma placa bacteriana de pH baixo e que é responsáve­l pela desmineral­ização dentária”, explica o médico dentista Filipe Melo, que lembra que o composto químico também pode ter contras: “É um pouco abrasivo e pode desgastar os dentes.”

Um estudo publicado no Journal of

Dental and Medical Sciences , em Maio de 2017, “sugere que o uso de pasta dos dentes feita em casa, que contém óleo de coco, pode ser uma ajuda útil para reduzir a placa, quando comparada com uma pasta de dentes comercial”. Mas as alternativ­as têm de se integrar num contexto cultural, lembra José Figueiredo, médico dentista há 15 anos. “Quando estive em Inglaterra trabalhei com uma população do Médio Oriente e eles usavam o pau de uma planta, o

miswak, para escovar os dentes. É muito usado no mundo islâmico, o próprio Maomé usava. O pau tem propriedad­es antibacter­ianas e outras interessan­tes, que interagem com o dente e a gengiva”, explica. Lembra que as pastas comerciais são benéficas – o flúor, por exemplo, é fundamenta­l para proteger os dentes – e não mostra grandes preocupaçõ­es perante componente­s tóxicos. “O triclosan, por exemplo, não está presente em quantidade relevante”, diz, resumindo: “Os benefícios são maiores do que os riscos.” Mas desde que se mantenha uma boca saudável (sem cáries) todos os métodos podem ser legítimos, diz José Figueiredo. E uma boa acção mecânica (boa escovagem) é de longe o mais importante, assim como outro detalhe: não bochechar no fim da escovagem, seja uma pasta tradiciona­l ou artesanal. “Deve-se cuspir a espuma mas nunca bochechar com água – assim não deixamos os ingredient­es actuar.”

A motivação para estas mudanças surge de uma tendência – a procura pelo mais puro, saudável –,jmas também consequAê a nacaia daa e a easatuados que revelam, apao ara eaxaea ma pala oh, o os–perigos Bernardoho­s – da utilização de produtos de limpeza. Bernardo aasfiIn vesti galh doo sr mesad is avUelnhoiv­se–rs idade de B erg en,nBaeNr no a rude og ta e,mac3o8mpan­h aram 6 mil indivíduos ao longo de um período de 20 anos e concluíram que a exposição constante a fórmulas limpa-tudo pode ter um impacto na saúde semelhante ao de fumar um maço de tabaco por dia durante 10 ou 20 anos. Usar água e um pano de micro fibraéo recomendad­o para a limpeza da casa.

Natural e moderno

Acabei por optar por uma versão mais elaborada: com água, vodka e vinagre de sidra. “A vodka tem excelentes propriedad­es para matar germes – também se pode substituir por álcool, mas que terá um cheiro mais medicinal”, explica Becky, autora da receita que publica no Clean Mama, um site que é guia para cuidar de uma casa, de forma natural, sem recorrer a químicos. Precisei de vodka (só tinha uma estranha, com aroma a maçã verde), vinagre e algumas gotas de óleo essencial (o de menta, mais uma vez). Além de tirar manchas e sujidade, a casa de banho ficou a cheirar a maçã verde.

Nas listas longas e ilegíveis de ingredient­es podem existir componente­s perigosos – nos produtos mais inocentes. Um batom pode ter derivados do petróleo, por exemplo. A DECO alerta para os hidrocarbo­netos que se podem acumular no fígado, baço ou gânglios linfáticos: favorecem o aparecimen­to de micronódul­os que podem ser cancerígen­os. A mesma associação analisou 20 marcas e 14 chumbaram no teste. É importante o consumidor afastar-se das siglas MOSH e POSH, alertam – excepto nos cremes hidratante­s, em que os elementos estão presentes mas não representa­m um perigo. Isto não quer dizer que todos os produtos comerciais são perigosos. É preciso evitar alarmismos, lembra o dermatolog­ista Miguel Peres Correia. “Vivemos uma época em que, aparenteme­nte, temos mais medo dos tratamento­s do que das doenças e se uma substância tem potencial de

“A VODKA TEM EXCELENTES PROPRIEDAD­ES PARA MATAR GERMES – TAMBÉM SE PODE SUBSTITUIR POR ÁLCOOL”

causar algum efeito adverso esse é afirmado à exaustão, esquecendo-nos do benefício que muitas vezes estamos a desperdiça­r.”

Visita à florista

A vontade de fugir aos ingredient­es potencialm­ente tóxicos foi uma das motivações de Lauren Singer para renovar o recheio das suas prateleira­s. A norte-americana faz muitos dos seus produtos e não só. Vive em Nova Iorque e através do seu blogue,

Trash Is for Tossers, relata como é possível viver uma vida natural, saudável e sem desperdíci­o na cidade mais populosa dos Estados Unidos. E já nota mudanças desde que criou o blogue. “Antes parecia que tinhas de seguir um padrão para te preocupare­s com o ambiente – tinhas de ser

hippie e ir a protestos. Mas agora não, podes ser uma blogger de moda que fala sobre a luta contra o plástico. É interessan­te ver esta viragem.” Foi enquanto estava na faculdade, a tirar estudos do ambiente, que se apercebeu que não aplicava na vida aquilo que aprendia nas aulas. Aí decidiu eliminar o plástico do dia-a-dia, entre outras formas de desperdíci­o, optando por produtos naturais. Decidiu criar um blogue para contar o processo, que exigiu muita pesquisa. Foi, aliás, Lauren que me ajudou a desentupir a banheira, deixando de lado as opções comerciais, feitas de componente­s tóxicos, muitas vezes perigosos no contacto com a pele ou por inalação. A receita da bloggertem três ingredient­es: bicarbonat­o de sódio, vinagre e água quente. Parece-se com uma miniexperi­ência científica (quando se derrama o vinagre sobre o bicarbonat­o tudo rapidament­e se transforma em espuma), mas a parte mais entusiasma­nte ainda está por contar – resulta. Com a banheira entupida há mais de três semanas finalmente resolvi o assunto. “Nestes processos nada é chapa cinco. Uma receita que resulta comigo pode não resultar com outra pessoa” explica à SÁBADO Tiago Lucena sobre o champô de camomila que experiment­ei. É com Cláudia Costa que partilha um projecto online .A Senhora do Monte sugere champôs, sabonetes e detergente­s para fazer em casa e ainda mezinhas para aliviar dores de cabeça – aproveitam o saber popular de gerações antigas. Convencera­m-me a fazer o meu próprio desmaquilh­ante: foi assim que visitei a florista do bairro para trazer uma aloé vera para casa. A seiva da planta junta-se ao soro fisiológic­o, óleo de coco e óleo essencial de alfazema e basta usar um disco de algodão para retirar base, rímel ou sombras – sem deixar a pele seca ou arder nos olhos.

Para o casal, fazer produtos naturais é, também, ser amigo do ambiente. “Se consumir produtos orgânicos nacionais, estou a diminuir as necessidad­es logísticas mas também a prevenir a minha saúde e a diminuir o meu impacto ambiental.” Acreditam que qualquer pessoa pode fazer a mudança e basta uma semana para notar diferenças na pele. No meu caso, uma semana serviu para perceber que a mudança requer tempo e dedicação – várias viagens a lojas, outras tantas horas a seguir receitas e mais tempo dedicado a procurar recipiente­s para guardar os produtos: quem diria que seria tão difícil encontrar frascos de vidro? “Não aguento. Tudo nesta casa cheira a menta.” A reacção aconteceu ao terceiro dia de experiênci­as. Gostava de dizer que se tratou de um manifesto exagero mas, contas feitas, havia gotinhas de óleo essencial de hortelã-pimenta (tipo de menta) em quase tudo: loção corporal, pasta de dentes, champô e desinfecta­nte para a casa. Faltavam ainda quatro dias para terminar a semana dedicada aos produtos naturais quando se deu o desabafo – mas, garanto, nenhuma relação saiu maltratada desta experiênci­a.

DESENTUPI A BANHEIRA COM TRÊS INGREDIENT­ES: BICARBONAT­O DE SÓDIO, VINAGRE E ÁGUA QUENTE “NÃO AGUENTO. TUDO NESTA CASA CHEIRA A MENTA.” A REACÇÃO ACONTECEU AO 3º DIA DE EXPERIÊNCI­AS

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O aspecto não é bom mas o cheiro sim. A receita de Stephanie Gerber deixa a pele suave
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O meu cabelo ficou fora de controlo – mas de 7 produtos, o champô foi o único que não correu bem
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Lauren Singer fundou a Simply Co, uma marca de detergente para a roupa que é orgânico e vegan

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