ASÉRIE QUE VAIPARA ALÉM DO LIVRO
Bruce Miller, o criador, prolongou a história imaginada por Margaret Atwood. Como é que isso se faz?
Olivro The Handmaid’s Tale – traduzido em Portugal sob dois títulos: Crónica de uma Serva (EuropaAmérica, 1988) e A História de uma
Serva (Bertrand, 2013) – encerra com uma viagem, embora na verdade deixe tudo em aberto. Na segunda temporada da série homónima, essa viagem tem um destino: a liberdade. A história de Offred (Jane, o seu nome real), interpretada por Elisabeth Moss, não se limita às últimas linhas escritas por Margaret Atwood, a autora canadiana. O criador e produtor Bruce Miller prolongou a narrativa de Atwood para os novos episódios que chegam a um canal português em 26 de Abril (estreia no NOS Play). Para esta produção do canal norte-americano Hulu, Miller lançou-se, então, numa nova história. Como é que isto se faz? João de Mancelos, escritor e professor de guionismo na Universidade da Beira Interior, afirma à SÁBADO que “a adaptação é um exercício que implica muita imaginação, um conhecimento profundo da obra, até para ver o que funciona e o que não resulta na transposição da linguagem literária para a cinematográfica. A série não tem de seguir o livro. Parece-me que é muito mais interessante fazer um trabalho de criação, em vez de recriação, porque apela ao talento do guionista.” Nesta nova temporada, à falta de um segundo volume, Miller teve mais espaço para encenar a sua própria interpretação da realidade distópica da República de Gilead e do percurso de Jane, que se vê grávida e em fuga, com a ajuda de Nick (Max Minghella), pai do bebé, mas também de um infiltrado com o intuito de delatar rebeldes do regime totalitário e misógino que tomou conta da maior parte dos Estados Unidos, em que as servas têm como único propósito dar à luz os filhos que os comandantes não conseguem ter com as mulheres. Para Jane,
esta temporada será uma constante aprendizagem do que é a maternidade, dividida entre a filha que deixa para trás e a liberdade do segundo filho que carrega.
“O que me parece interessante nestas séries – e há muitas baseadas em livros (Guerra dos Tronos, por exemplo, Sherlock Holmes, Pretty
Little Liars ou The Magicians )–é que começam por partir do enredo mas depois afastam-se dele. Porquê? Porque muito mais importante que a história é a personagem. Costumo dizer aos meus alunos que grandes personagens fazem grandes histórias”, observa João de Mancelos. A prova disso é a criação de novas tramas e geografias. Nesta temporada, as colónias são um dos locais centrais da acção, referidas no livro e na primeira temporada, mas nunca amplamente descritas, o lugar mortífero e tóxico para onde são deportadas as servas que não colaboram com o regime e restantes mulheres inférteis, um fardo na nova sociedade.
“Quando se trabalha com o autor há alguma garantia de coerência entre a personagem e as novas histórias e a personagem e as histórias originais” e esta será uma mais-va-
ATWOOD CARACTERIZA GILEAD COMO UM REGIME TOTALITARISTA EM QUE AS SERVAS SÃO AS PÁRIAS DA SOCIEDADE
A SÉRIE FOI GALARDOADA COM OITO EMMYS, EM 2017, E DOIS GLOBOS DE OURO, EM 2018
lia de ter Margaret Atwood a orientar o enredo. De qualquer das formas, “criar histórias de personagens já existentes é um exercício um pouco perigoso, porque os leitores têm expectativas que podem ser subvertidas pela negativa. As histórias podem não resultar e isso pode gerar o seu afastamento. O interesse é fundamental, é aquilo que está entre a obra e o espectador. A partir do momento em que esse laço se começa a degradar e o espectador começa a desinteressar-se, a história já atingiu o seu limite”, acrescenta Mancelos. Não que este seja o caso de The Handmaid’s Tale, cujas personagens começam agora a evoluir. Por exemplo, é recuperada a figura de Ofglen (Alexis Bledel), membro de Mayday, a Resistência. Um
flashback revela a sua vida antes de Gilead: era Emily, uma professora universitária que foi separada da mulher e da filha quando A Lei foi aplicada e foram anulados todos os casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Percebe-se então que Emily foi punida com o exílio nas colónias, depois de ter atropelado um Guardião (a última cena em que suge na primeira temporada). Na nova temporada, que se estende por 13 episódios, são também apresentadas novas personagens (a mãe de Jane, por exemplo, que é referida no livro como uma feminista que de repente desaparece de casa sem deixar rasto, presumidamente levada pelo regime para as colónias).
O sucesso da obra
The Handmaid’s Tale tornou-se uma das séries mais aclamadas pela crítica nos últimos anos, acumulando um palmarés impressio- nante, do qual sobressaem dois Globos de Ouro e oito prémios Emmy para televisão.
Esta é já a segunda adaptação para um ecrã do romance de Margaret Atwood (a primeira foi realizada em 1990, pelo alemão Volker Schlöndorff, com argumento do dramaturgo Harold Pinter e com Natasha Richardson no papel principal) e deu um novo fôlego a um livro com mais de 30 anos. Em 2017 surgiu como o mais lido no
ranking da Amazon.
Russell Perreault, director de publicidade da editora Anchor Books, responsável pela distribuição do livro, afirmou à National Public Radio norte-americana que desde a eleição de Donald Trump para a presidência as vendas aumentaram 200 por cento.
João de Mancelos aceita que haja uma ligação: “Certos clássicos da literatura podem ser lidos, aproveitados e ter relevância política de-zenas ou centenas de anos depois de terem surgido. Neste caso há uma crítica velada e um aviso ao que está a acontecer na democra-cia norte-americana. Nesse sen-tido tem também uma relevância social.”