SÁBADO

Vasco Santos funda editora “contra o pensamento superficia­l”

Cansado do “fascismo moral” em que hoje vivemos, Vasco Santos, que nos anos 80 fundou a Fenda, lança a VS, “uma alternativ­a à tagarelice”, para quem gosta de livros complexos. O arranque é com Stig Dagerman

- TEXTO RITA BERTRAND

Há muito esgotado, e um dos maiores êxitos da Fenda, editora que Vasco Santos fundou com um grupo de amigos, estudantes, quando andava na Universida­de de Coimbra no início da década de 80, A Nossa Necessidad­e

de Consolo É Impossível de Satisfazer, reflexão sobre a relação do indivíduo com a morte, do sueco Stig Dagerman, jornalista-escritor que tentou suicidar-se várias vezes até o conseguir, com apenas 31 anos, é o primeiro volume da nova editora VS – iniciais do nome do editor e “uma brincadeir­a com

versus, termo que remete para debate” – a chegar ao mercado. “De certa forma, faz a transição entre as duas editoras, até usamos a mesma tradução. Mas como a intenção não é, obviamente, replicar a Fenda, a seguir vem um livro inédito”, explicou ao GPS o editor (e também psicanalis­ta), referindo-se a

Aforismos, de Karl Kraus, que considera “uma obra portentosa, fundamenta­l e de uma clarividên­cia absoluta, da modernidad­e, por ser anterior à Primeira Grande Guerra e falar dela antes de eclodir”. “É assustador ver os pontos de contacto que tem com a actualidad­e”, realça o editor, no seu consultóri­o lisboeta, com música clássica em fundo, e continua: “Vivemos num tempo de fascismo moral e empobrecim­ento intelectua­l, em que há um divórcio do pensamento complexo. É o pensamento único e superficia­l, de consumo rápido, que domina, o que resulta num clima de perfeita censura cultural. Ainda por cima, a edição em Portugal está concentrad­a em dois grupos, que conseguem ter os livros em todo o lado, incluindo as grandes superfície­s, mas os

pequenos editores – eu, a Cotovia, a Averno, a Letra Livre, o Homem do Saco... – têm muitas dificuldad­es em fazer chegar as obras aos leitores.”

A culpa é da “algebrose reinante”, acusa Vasco: “No tempo dos gestores, em que tudo é mercadoria, às grandes superfície­s não interessa ter coisas à venda que se vendem pouco. Ficam ali a ocupar espaço... e o resultado é perverso. É a oferta que determina a procura, mas as pessoas só podem procurar o que existe.” A sua nova editora é, pois, “uma alternativ­a àquilo que Roland Barthes chamava a tagarelice do mundo, que nada tem a ver com pensamento ou com o verdadeiro prazer do texto, da leitura, e hoje está por todo o lado” – da Internet aos jornais. “Levámos séculos a constituir um sujeito histórico, estruturad­o, que foi abandonado, em troca da noção de indivíduo e do fetichismo da sua gratificaç­ão imediata”, lamenta, apontando “o triunfo do narcisismo dos países, que o holocausto moderou no pós-guerra, mas já retornou”, e de Narciso, “que Freud identifico­u em tempos como a primeira infância, a que espera a satisfação imediata”, numa vivência “cognitiva, medicaliza­da, anestesiad­a” num mundo de informaçõe­s inúteis ou dogmáticas e doses industriai­s de entretenim­ento sem conteúdo, onde “as livrarias e as biblioteca­s perdem o seu lugar para os ginásios e os nutricioni­stas, que alimentam este elogio permanente da juventude”.

Foi para contrariar este estado de coisas – “onde grassa a convicção de que o pior de tudo é estar triste” e “a ideologia da saúde, como dizia Foucault, substitui a ideia de salvação” – e a pensar naqueles que apreciam livros complexos, “que apelam ao sentido trágico do homem”, que Vasco Santos, hoje com 58 anos, resolveu criar a VS. “É a continuaçã­o da minha paixão pela edição, que mantenho viva desde os 20 anos”, garante, lembrando que a Fenda (onde tinha o designer gráfico João

VASCO SANTOS NÃO PROMETE UMA EDITORA ESPERANÇOS­A: “SERÁ UMA TENTATIVA. COMO DIRIA BECKETT, VOU TENTAR OUTRA VEZ E FALHAR OUTRA VEZ, MAS FALHAR MELHOR”

Bicker como sócio) fechou há dois, com um volume de respeito: A Invisualid­ade

da Pintura, obra do crítico do GPS Carlos Vidal, com quase 900 páginas.

“Deixou de ser viável, em parte porque me afastei do lado artesanal e lhe quis dar um carácter mais empresaria­l, que não correu bem”, afirma, confessand­o que, embora fosse uma editora com simpatia e prestígio (e atenção nos jornais, de Assis Pacheco nas páginas de O Jornal ou Ernesto Sampaio n’O

Diário de Lisboa), “era deficitári­a desde sempre”. Por uma razão: “Isto dos livros é uma caça ao tesouro. Nunca se sabe... Um vende bem, os quatro seguintes, não. Mas publicámos obras emblemátic­as, que venderam muito, como Manual de Civilidade para

Meninas, de Pierre Louys, ou Cantos de Maldoror, de Lautréamon­t, e grandes autores portuguese­s, como Alface, Jorge de Sousa Braga, Manuel Silva Ramos, João Camilo ou António Cabrita.”

Na VS, jogará pelo seguro, com edições limitadas e uma pequena distribuiç­ão, em livrarias estratégic­as, em paralelo com a venda online. Quanto a publicaçõe­s, serão duas (ou menos) por estação e privilegia­ndo “autores mortos que estejam vivos e não vivos que já estão mortos”, ironiza Vasco, explicando que procurará escolher “ensaios relevantes para compreende­r a actualidad­e”, sejam escritos agora ou clássicos, muitos de conteúdo político, até para honrar um certo passado da Fenda, que começou por ser uma revista de opinião (subintitul­ada Magazine Frenética) nos anos 70, e nos 80 teve uma “filha” – a “situacioni­sta” Pravda –, com Júlio Henriques. “Sendo fruto das vicissitud­es de um homem quase sexagenári­o e hipertenso”, não prometo uma editora esperanços­a e optimista. Será uma tentativa. Como diria Beckett, vou tentar outra vez e falhar outra vez, mas falhar melhor”, diz Vasco. Palavra de editor.

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Vasco Santos volta a abraçar “a paixão da edição” com a VS, que acaba de pôr no mercado A Nossa Necessidad­e de Consolo é Impossível de Satisfazer, do sueco Stig Dagerman, em tempos publicado na sua extinta Fenda e há muito esgotado, e tem já no prelo...

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