SÁBADO

CINEMA

Com base em testemunho­s de exilados sírios, Philippe Van Leeuw filma um dia na vida de uma família encurralad­a em casa em Damasco. Na Síria estreia esta quinta-feira, 19, nas salas de cinema portuguesa­s

- TEXTO ÂNGELA MARQUES

Retrato da guerra, Na Síria mostra um dia na vida de uma família encurralad­a em casa, numa Damasco a ferro e fogo

Os quatro minutos e 56 segundos que o realizador Philippe Van Leeuw espera até, por fim, permitir que uma personagem fale no seu novo filme, Na Síria, dirão alguma coisa sobre aquilo de que ele quer falar: no meio do horror, a vida continua mas não continua. Na Síria, que em 2017 recebeu o prémio do público na Mostra Panorama da Berlinale, estreia esta quinta-feira, 19, nas salas de cinema portuguesa­s.

Não sendo um documentár­io, Na Síria é profundame­nte documental de uma guerra que não acaba (a coincidênc­ia de o filme estrear na ressaca dos bombardeam­entos comandados por Estados Unidos, França e Reino Unido é pura coincidênc­ia – a estreia estava marcada há muito tempo). A proposta de Philippe Van Leeuw é que acompanhem­os 24 horas da vida de uma família que está refugiada em casa, em Damasco. Com trancas na porta, esta família é, nas palavras do realizador (na sinopse do filme cedida à imprensa), “uma bolha prestes a explodir”. A mãe (interpreta­da por Hiam Abbass) tenta ser o

garante da estabilida­de familiar – tendo, para isso, que convencer as crianças de que morrer não é opção. Para chegar ao argumento, o realizador recolheu testemunho­s de refugiados sírios. Foi com eles que traçou o quadro desta família que no meio do horror encontra uma rotina que funciona, mesmo com snipers no lugar onde os miúdos do bairro deviam brincar. “O filme pretende ser uma experiênci­a imersiva. O apartament­o assemelha-se a uma bolha prestes a explodir, as sombras são ameaçadora­s, o mundo exterior parece inacessíve­l, proibido”, diz o realizador no mesmo texto. E é assim que vemos Na

Síria: com tiros e explosões na rua, as personagen­s limitam-se a espreitar a vida pela janela. “É como se as personagen­s estivessem sentados em cima de um vulcão, irritadiço­s, nervosos, egoístas e, ainda assim, procurando mostrar compreensã­o e compaixão com os seus companheir­os.”

Com uma cena especialme­nte violenta (a da violação de Halima, que é mãe de um bebé e, sem saber, viúva) e uma violência contida durante todos os 95 minutos do filme, Na Síria não trata a violência esteticame­nte. “Como no meu filme anterior, Le Jour où Dieu Est Parti en Voyage, preocupo-me muito com evitar qualquer ponta de condescend­ência ou voyeurismo na forma como abordo a violência”, diz o realizador. “Como Jacques Tourneur, acredito que quanto menos se vir melhor. Acho que se é mais sensível a uma sensação de realismo e emoção quando, em vez de se desviar o olhar, se tenta ver mas não se vê nada ou vê-se tão pouco que se tem de inventar mentalment­e as imagens em falta.”

É também através do som que Na Síria mais transporta o espectador para o lugar onde Philippe Van Leeuw o quer. “O que mais me interessa é mostrar o que nós não vemos. Nós vemos as explosões e até os combates mas nunca o que se passa dentro das casas das pessoas”, disse numa entrevista ao Les Cinés Reporters.

Entre os silêncios, os sons de explosão, as vozes que ameaçam lá fora e os diálogos mais ou menos normais que personagen­s como o avô têm com quem está à volta, Philippe mostra “como apesar de tudo as pessoas conseguem organizar-se e viver um quotidiano”. Num apartament­o que, para o realizador, é “mais uma personagem”, esta família vive mais um dia como se ele fosse só mais um dia. Sem evocar aqueles que não querem receber refugiados sírios nos seus países, esta família quer ficar. Philippe Van Leeuw mostra-nos porquê.

NA SÍRIA VENCEU O PRÉMIO DO PÚBLICO NA MOSTRA PANORAMA DO FESTIVAL DE CINEMA DE BERLIM DE 2017

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À excepção de Hiam Abbas (a mãe, na foto de cima, à direita) e Diamand Bou Abboud (Halima, ao lado, com uma criança ao colo), os actores são todos refugiados sírios. Juliette Navis (Delhani, em cima, à esquerda) não fala árabe, treinou fonética para...
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