Acusação Como Cristiano Ronaldo prepara a resposta ao escândalo de Las Vegas
Se os documentos apresentados pela acusação foram roubados, não são válidos. É uma “prova proibida”. Eis como o pirata dos emails do Benfica entra nos planos dos advogados do futebolista.
Prova proibida, violação da privacidade, roubo de documentos são algumas das linhas essenciais da defesa que os advogados de Cristiano Ronaldo estão a preparar para responder à notificação de reabertura do caso de alegada violação protagonizado pelo futebolista. O roubo de documentos, alguns dos quais anexados à queixa apresentada, é relacionado com o Football Leaks e isso tem implicações relevantes. Os documentos de todo o processo que envolve Ronaldo em Las Vegas, no Nevada, EUA, incluindo o acordo celebrado entre o jogador e a mulher que o acusa de violação, Kathryn Mayorga, foram roubados por via informática do universo de representantes e advogados mais próximos do futebolista (o empresário Jorge Mendes e o advogado portuense Carlos Osório de Castro). O suspeito que todos procuram é já familiar da polícia portuguesa, dos três grandes clubes nacionais e de um dos maiores fundos de investimento no futebol, a Doyen: trata-se do pirata informático português Rui Pinto, um dos envolvidos e, porventura, o maior impulsionador do caso Football Leaks e no roubo dos emails da correspondência interna do Benfica, apurou a SÁBADO junto dos protagonistas desta história. A Gestifute, de Jorge Mendes, agente de Ronaldo, e o escritório de advogados liderado por Carlos Osório de Castro sofreram ataques sucessivos a partir de 2016 e duas coisas são certas: nenhum apresentou queixa-crime, mas as duas entidades fizeram sucessivas varredelas de despistagem das suas vulnerabilidades informáticas, sobretudo a partir do momento em que perceberam a dimensão do fenómeno que sacudia o futebol internacional. Na prática, todas as relações profissionais estabelecidas pelo escritório de Osório de Castro, que foi integrado em 2006 na Morais Leitão e Associados, têm sido analisadas na perspectiva da segurança informática
NEM JORGE MENDES NEM O ADVOGADO OSÓRIO DE CASTRO APRESENTARAM QUEIXA PELOS ASSALTOS INFORMÁTICOS
nos últimos dois anos. Sobretudo a partir do ataque de Rui Pinto à Doyen e a empresas espanholas com quem Jorge Mendes tem relações profissionais, incluindo o escritório de advogados Senn e Ferrero. Daqui, voaram mais de 190 mil documentos num ataque informático que a polícia espanhola admite ter sido protagonizado por Rui Pinto, no quadro do Football Leaks.
Em Espanha, a investigação foi desencadeada na sequência de uma queixa de roubo de informação confidencial entre advogado e cliente, apresentada pela Senn Ferrero. Um dos sócios, Javier Ferrero, questionado pela SÁBADO, esclareceu apenas que não pode falar no assunto.
A Senn Ferrero, de Madrid, manteve relações laborais com Mendes e Osório de Castro até ao ano passado, representando Cristiano Ronaldo e outros futebolistas nos conflitos com o Fisco espanhol. A relação acabou após a condenação de Ronaldo, com os dois escritórios a defenderem entendimentos diferentes sobre a estratégia a adoptar. Foi a informação revelada pelo Football Leaks que levou à reabertura, em Espanha, dos processos fiscais de Ronaldo e José Mourinho. O futebolista foi condenado a pagar 18,8 milhões e a uma pena de dois anos de prisão quando já estava assessorado por um ex-magistrado, José António Choclán, contratado por Jorge Mendes. Depois dele, Marcelo e Modric foram também condenados. No processo aberto em Madrid, na sequência da queixa da Senn Ferrero, a polícia suspeita de Rui Pinto como autor dos crimes informáticos em causa. O método – spear phishing é o mesmo na origem dos crimes contra o Sporting, Benfica e Doyen. Foi pedida a cooperação da justiça portuguesa mas, na altura, o processo apenas chegou a Espanha por força de uma colaboração informal entre polícias. Investigadores dos dois países chegaram a encontrar-se junto à fronteira e trocaram informações sobre os dois processos.
Do Football Leaks ao #MeToo
O processo da alegada violação publicado pela revista alemã DerSpiegel inclui correio electrónico trocado entre os advogados das duas partes, mensagens de telemóvel trocadas entre o próprio Osório de Castro e Cristiano Ronaldo na altura das negociações com a advogada de Kathryn Mayorga, para lá de toda a documentação – do contrato e anexos, como a carta que a mulher alegadamente violada escreveu ao futebolista e quis incluir no acordo, até aos relatórios médicos.
Fontes próximas da defesa do jogador admitem o cenário de uma violação massiva da segurança informática dos respectivos computadores. No plano jurídico, o roubo dos documentos não tem consequências neutras e a defesa vai agarrar-se a isso. A contratação de uma equipa de advogados na Alemanha, para enquadrar a relação com a Der Spiegel é, neste ponto, reveladora. A primeira prioridade foi constituir a equipa, para depois preparar a artilharia jurídica. Osório de Castro viajou para Las Vegas assim que a denúncia de Mayorga foi publicada e foi acompanhando pessoalmente o assunto junto das autoridades norte-americanas. A opção foi constituir uma equipa liderada pelo advogado criminalista Peter Christiansen e que tem como consultor David Chesnoff, o advogado das celebridades nos EUA, que já defendeu Britney Spears, Andre Agassi e Michael Jackson. Aliás, um dos casos mais mediáticos e que pode ter semelhanças com o de Ronaldo é o do ilusionista David Copperfield, acusado de ter drogado e abusado de uma mulher em 1988. A alegada vítima diz que tudo aconteceu durante um desfile de moda, quando tinha 17 anos. Brittney Lewis afirma que apresentou queixa em 2007. O caso ainda está a ser investigado, mas Copperfield escreveu uma longa carta em que reconhece a importância do movimento #MeToo mas também fala do impacto das “falsas acusações” na sua vida. Em 2007 já fora acusado por outra modelo, numa queixa que foi retirada. A experiência de David Chesnoff e a estratégia que tem usado em pro-
A DEFESA INCLUI COMO CONSULTOR DAVID CHESNOFF, O ADVOGADO DAS CELEBRIDADES NOS EUA
cessos como este podem revelar-se preciosas para a gestão jurídica mas também mediática do caso.
A teoria da árvore envenenada
Constituída a equipa jurídica, os advogados não têm parado de analisar a queixa linha a linha, de consultar processos antigos e de passar a pente fino a jurisprudência do Supremo Tribunal americano em matéria de direitos fundamentais. Têm de encontrar argumentos sólidos para atacar, por exemplo, a incorporação na queixa de Mayorga de documentos roubados.
O questionário feito pelos advoga- dos de Ronaldo e as respostas deste, sobre os acontecimentos de 2009 em Las Vegas já se tornou um elemento central do caso – tanto na perspectiva da acusação como da defesa. Os advogados Peter Christiansen e David Chesnoff preparam todos os cenários caso Ronaldo venha a ser notificado para depor, mas, antes disso, vão opor-se à reabertura do processo. Alegarão, apurou a SÁBADO ,quea queixa está cheia da chamada “prova proibida”. Os exemplos são vários mas os advogados apontam principalmente o referido questionário e os SMS trocados entre Cristiano Ronaldo e o seu advogado Osório de Castro. A queixa apresentada pelo advogado de Mayorga, Leslie Stovall, a 27 de Setembro (e assinada por ela a 18) tem sido analisada linha a linha pela defesa. Um dos aspectos sensíveis está nas ditas “novas provas” – que são, basicamente, documentos obtidos de forma considerada ilegal pelos advogados de Ronaldo.
O questionário ao jogador terá sido um dos documentos furtados através de pirataria informática das empresas de Mendes ou dos escritórios dos advogados. Nos EUA, a questão da prova proibida é muito importante e tem jurisprudência fixada pelo Supremo, que a define como uma “árvore envenenada”, ou seja, declara nulas as provas obtidas com base num acto ilícito da polícia ou na prática de um crime, como o roubo por via informática. Esta regra foi fixada a partir do caso Silverthorne Lumber vs. United States, de 1920, em que a polícia copiou ilegalmente os livros de contas de uma empresa numa investigação de fraude, para travar uma violação da Quarta Emenda, que protege os cidadãos contra buscas e apreensões arbitrárias da polícia. Mais tarde, a teoria seria aperfeiçoada com o caso Nardone vs. United States, de 1939, abrangendo a protecção da Quinta Emenda. A expressão “árvore envenenada” nasceu aí, retirada de uma passagem bíblica.
A defesa de Ronaldo também pega na questão da prova proibida por outro ângulo: o questionário não só foi obtido de uma forma ilegal como representaria uma verdadeira auto-incriminação, numa flagrante violação da Quinta Emenda.
No plano público, a defesa vai insistir também na violação dos direitos fundamentais através do recurso à prova proibida. Christian Schertz, o advogado alemão, foi claro, logo nos dias que se seguiram ao ressuscitar do caso pela DerSpiegel, que “a matéria noticiada é manifestamente ilegal e viola os direitos de personalidade do nosso cliente de uma forma extremamente grave. Esta é uma notícia de suspeição inadmissível em matéria de privacidade”.
Daqui já se podia perceber qual a linha principal de estratégia: provas obtidas de forma ilícita. A polícia
metropolitana de Las Vegas anunciou formalmente, a 2 de Outubro, a reabertura do caso e Ronaldo tem agora cerca de 20 dias para responder à intimação dos advogados de Mayorga que o acusam de 11 crimes, entre os quais abuso sexual, chantagem e difamação. No Nevada, a violação é o segundo crime mais grave, a seguir ao homicídio e a pena pode chegar à prisão perpétua; no pior dos casos, Ronaldo não poderia voltar aos Estados Unidos.
Por isso, não é de estranhar que os
sites de advogados mais famosos de Las Vegas tenham especialistas em crimes sexuais. Como se pode ler no
site do advogado criminal de Las Vegas Michael Becker, a maior probabilidade de um advogado de defesa conseguir ilibar o seu cliente é evocando falsas alegações. Ou seja, se o advogado conseguir provar que existem dúvidas razoáveis sobre o que se passou. Falta de provas é outra forte defesa. O que quer isto dizer? A não ser que exista um vídeo onde se veja a violação, poderá cair na categoria de “ele disse/ela disse”. Por último, uma das questões mais difíceis de provar é o consentimento. A violação acontece quando não há consentimento e se o advogado de defesa conseguir provar que houve, será difícil ser condenado. Outra estratégia usada nestes casos é visar a reputação da vítima. Aliás, terá sido essa uma das estratégias utilizadas aquando do acordo extrajudicial, segundo acusou Kathryn. “Tentaram descredibilizar-me”, contou ao Der Spiegel. Mayorga, que apostava então numa carreira de modelo, era paga para atrair clientes para a zona VIP do Rain, no Palms Casino Resort, e fazer com que comprassem bebidas. Segundo a DerSpiegel, Ronaldo terá contratado investigadores para perceber o passado de Mayorga, nascida em 1984, em Las Vegas, filha de um bombeiro e de uma doméstica. Não encontraram nada incriminatório.
Liquidar o contrato
O caso terminaria com um contrato de confidencialidade. Para se preparem para o acordo extrajudicial rea-
lizaram um inquérito, de cerca de 200 perguntas, com várias questões quer a Cristiano Ronaldo quer ao primo e ao cunhado para apurar o que tinha acontecido. As duas partes encontraram-se a 12 de Janeiro de 2010, para assinar o acordo. Ronaldo não esteve presente, ia trocando mensagens com o advogado Osório de Castro (as tais reveladas pela Der Spiegel), em que falam de valores da indemnização. Foram 12 horas de negociação. Foi então que Mayorga fez questão de escrever uma carta de 6 páginas para ser lida a Ronaldo. Uma exigência que fazia parte do acordo. “Espero que te apercebas daquilo que me fizeste e que tenhas aprendido com este erro terrível!! Não roubes a vida de outra mulher como roubaste a minha!! Não quero saber do teu dinheiro, isso era a última coisa que eu queria!!”
Mas nove anos depois, a 27 de Setembro, Mayorga apresentou queixa no Clark County Nevada Eighth Judicial District Court. Quer que o acordo de confidencialidade incluído no acordo extrajudicial seja anulado. Disse à revista alemã que foi inspirada pelo movimento MeToo – será obviamente uma tecla em que o seu advogado mais insistirá.