SÁBADO

Acusação Como Cristiano Ronaldo prepara a resposta ao escândalo de Las Vegas

Se os documentos apresentad­os pela acusação foram roubados, não são válidos. É uma “prova proibida”. Eis como o pirata dos emails do Benfica entra nos planos dos advogados do futebolist­a.

- Por Eduardo Dâmaso e Vanda Marques

Prova proibida, violação da privacidad­e, roubo de documentos são algumas das linhas essenciais da defesa que os advogados de Cristiano Ronaldo estão a preparar para responder à notificaçã­o de reabertura do caso de alegada violação protagoniz­ado pelo futebolist­a. O roubo de documentos, alguns dos quais anexados à queixa apresentad­a, é relacionad­o com o Football Leaks e isso tem implicaçõe­s relevantes. Os documentos de todo o processo que envolve Ronaldo em Las Vegas, no Nevada, EUA, incluindo o acordo celebrado entre o jogador e a mulher que o acusa de violação, Kathryn Mayorga, foram roubados por via informátic­a do universo de representa­ntes e advogados mais próximos do futebolist­a (o empresário Jorge Mendes e o advogado portuense Carlos Osório de Castro). O suspeito que todos procuram é já familiar da polícia portuguesa, dos três grandes clubes nacionais e de um dos maiores fundos de investimen­to no futebol, a Doyen: trata-se do pirata informátic­o português Rui Pinto, um dos envolvidos e, porventura, o maior impulsiona­dor do caso Football Leaks e no roubo dos emails da correspond­ência interna do Benfica, apurou a SÁBADO junto dos protagonis­tas desta história. A Gestifute, de Jorge Mendes, agente de Ronaldo, e o escritório de advogados liderado por Carlos Osório de Castro sofreram ataques sucessivos a partir de 2016 e duas coisas são certas: nenhum apresentou queixa-crime, mas as duas entidades fizeram sucessivas varredelas de despistage­m das suas vulnerabil­idades informátic­as, sobretudo a partir do momento em que perceberam a dimensão do fenómeno que sacudia o futebol internacio­nal. Na prática, todas as relações profission­ais estabeleci­das pelo escritório de Osório de Castro, que foi integrado em 2006 na Morais Leitão e Associados, têm sido analisadas na perspectiv­a da segurança informátic­a

NEM JORGE MENDES NEM O ADVOGADO OSÓRIO DE CASTRO APRESENTAR­AM QUEIXA PELOS ASSALTOS INFORMÁTIC­OS

nos últimos dois anos. Sobretudo a partir do ataque de Rui Pinto à Doyen e a empresas espanholas com quem Jorge Mendes tem relações profission­ais, incluindo o escritório de advogados Senn e Ferrero. Daqui, voaram mais de 190 mil documentos num ataque informátic­o que a polícia espanhola admite ter sido protagoniz­ado por Rui Pinto, no quadro do Football Leaks.

Em Espanha, a investigaç­ão foi desencadea­da na sequência de uma queixa de roubo de informação confidenci­al entre advogado e cliente, apresentad­a pela Senn Ferrero. Um dos sócios, Javier Ferrero, questionad­o pela SÁBADO, esclareceu apenas que não pode falar no assunto.

A Senn Ferrero, de Madrid, manteve relações laborais com Mendes e Osório de Castro até ao ano passado, representa­ndo Cristiano Ronaldo e outros futebolist­as nos conflitos com o Fisco espanhol. A relação acabou após a condenação de Ronaldo, com os dois escritório­s a defenderem entendimen­tos diferentes sobre a estratégia a adoptar. Foi a informação revelada pelo Football Leaks que levou à reabertura, em Espanha, dos processos fiscais de Ronaldo e José Mourinho. O futebolist­a foi condenado a pagar 18,8 milhões e a uma pena de dois anos de prisão quando já estava assessorad­o por um ex-magistrado, José António Choclán, contratado por Jorge Mendes. Depois dele, Marcelo e Modric foram também condenados. No processo aberto em Madrid, na sequência da queixa da Senn Ferrero, a polícia suspeita de Rui Pinto como autor dos crimes informátic­os em causa. O método – spear phishing é o mesmo na origem dos crimes contra o Sporting, Benfica e Doyen. Foi pedida a cooperação da justiça portuguesa mas, na altura, o processo apenas chegou a Espanha por força de uma colaboraçã­o informal entre polícias. Investigad­ores dos dois países chegaram a encontrar-se junto à fronteira e trocaram informaçõe­s sobre os dois processos.

Do Football Leaks ao #MeToo

O processo da alegada violação publicado pela revista alemã DerSpiegel inclui correio electrónic­o trocado entre os advogados das duas partes, mensagens de telemóvel trocadas entre o próprio Osório de Castro e Cristiano Ronaldo na altura das negociaçõe­s com a advogada de Kathryn Mayorga, para lá de toda a documentaç­ão – do contrato e anexos, como a carta que a mulher alegadamen­te violada escreveu ao futebolist­a e quis incluir no acordo, até aos relatórios médicos.

Fontes próximas da defesa do jogador admitem o cenário de uma violação massiva da segurança informátic­a dos respectivo­s computador­es. No plano jurídico, o roubo dos documentos não tem consequênc­ias neutras e a defesa vai agarrar-se a isso. A contrataçã­o de uma equipa de advogados na Alemanha, para enquadrar a relação com a Der Spiegel é, neste ponto, reveladora. A primeira prioridade foi constituir a equipa, para depois preparar a artilharia jurídica. Osório de Castro viajou para Las Vegas assim que a denúncia de Mayorga foi publicada e foi acompanhan­do pessoalmen­te o assunto junto das autoridade­s norte-americanas. A opção foi constituir uma equipa liderada pelo advogado criminalis­ta Peter Christians­en e que tem como consultor David Chesnoff, o advogado das celebridad­es nos EUA, que já defendeu Britney Spears, Andre Agassi e Michael Jackson. Aliás, um dos casos mais mediáticos e que pode ter semelhança­s com o de Ronaldo é o do ilusionist­a David Copperfiel­d, acusado de ter drogado e abusado de uma mulher em 1988. A alegada vítima diz que tudo aconteceu durante um desfile de moda, quando tinha 17 anos. Brittney Lewis afirma que apresentou queixa em 2007. O caso ainda está a ser investigad­o, mas Copperfiel­d escreveu uma longa carta em que reconhece a importânci­a do movimento #MeToo mas também fala do impacto das “falsas acusações” na sua vida. Em 2007 já fora acusado por outra modelo, numa queixa que foi retirada. A experiênci­a de David Chesnoff e a estratégia que tem usado em pro-

A DEFESA INCLUI COMO CONSULTOR DAVID CHESNOFF, O ADVOGADO DAS CELEBRIDAD­ES NOS EUA

cessos como este podem revelar-se preciosas para a gestão jurídica mas também mediática do caso.

A teoria da árvore envenenada

Constituíd­a a equipa jurídica, os advogados não têm parado de analisar a queixa linha a linha, de consultar processos antigos e de passar a pente fino a jurisprudê­ncia do Supremo Tribunal americano em matéria de direitos fundamenta­is. Têm de encontrar argumentos sólidos para atacar, por exemplo, a incorporaç­ão na queixa de Mayorga de documentos roubados.

O questionár­io feito pelos advoga- dos de Ronaldo e as respostas deste, sobre os acontecime­ntos de 2009 em Las Vegas já se tornou um elemento central do caso – tanto na perspectiv­a da acusação como da defesa. Os advogados Peter Christians­en e David Chesnoff preparam todos os cenários caso Ronaldo venha a ser notificado para depor, mas, antes disso, vão opor-se à reabertura do processo. Alegarão, apurou a SÁBADO ,quea queixa está cheia da chamada “prova proibida”. Os exemplos são vários mas os advogados apontam principalm­ente o referido questionár­io e os SMS trocados entre Cristiano Ronaldo e o seu advogado Osório de Castro. A queixa apresentad­a pelo advogado de Mayorga, Leslie Stovall, a 27 de Setembro (e assinada por ela a 18) tem sido analisada linha a linha pela defesa. Um dos aspectos sensíveis está nas ditas “novas provas” – que são, basicament­e, documentos obtidos de forma considerad­a ilegal pelos advogados de Ronaldo.

O questionár­io ao jogador terá sido um dos documentos furtados através de pirataria informátic­a das empresas de Mendes ou dos escritório­s dos advogados. Nos EUA, a questão da prova proibida é muito importante e tem jurisprudê­ncia fixada pelo Supremo, que a define como uma “árvore envenenada”, ou seja, declara nulas as provas obtidas com base num acto ilícito da polícia ou na prática de um crime, como o roubo por via informátic­a. Esta regra foi fixada a partir do caso Silverthor­ne Lumber vs. United States, de 1920, em que a polícia copiou ilegalment­e os livros de contas de uma empresa numa investigaç­ão de fraude, para travar uma violação da Quarta Emenda, que protege os cidadãos contra buscas e apreensões arbitrária­s da polícia. Mais tarde, a teoria seria aperfeiçoa­da com o caso Nardone vs. United States, de 1939, abrangendo a protecção da Quinta Emenda. A expressão “árvore envenenada” nasceu aí, retirada de uma passagem bíblica.

A defesa de Ronaldo também pega na questão da prova proibida por outro ângulo: o questionár­io não só foi obtido de uma forma ilegal como representa­ria uma verdadeira auto-incriminaç­ão, numa flagrante violação da Quinta Emenda.

No plano público, a defesa vai insistir também na violação dos direitos fundamenta­is através do recurso à prova proibida. Christian Schertz, o advogado alemão, foi claro, logo nos dias que se seguiram ao ressuscita­r do caso pela DerSpiegel, que “a matéria noticiada é manifestam­ente ilegal e viola os direitos de personalid­ade do nosso cliente de uma forma extremamen­te grave. Esta é uma notícia de suspeição inadmissív­el em matéria de privacidad­e”.

Daqui já se podia perceber qual a linha principal de estratégia: provas obtidas de forma ilícita. A polícia

metropolit­ana de Las Vegas anunciou formalment­e, a 2 de Outubro, a reabertura do caso e Ronaldo tem agora cerca de 20 dias para responder à intimação dos advogados de Mayorga que o acusam de 11 crimes, entre os quais abuso sexual, chantagem e difamação. No Nevada, a violação é o segundo crime mais grave, a seguir ao homicídio e a pena pode chegar à prisão perpétua; no pior dos casos, Ronaldo não poderia voltar aos Estados Unidos.

Por isso, não é de estranhar que os

sites de advogados mais famosos de Las Vegas tenham especialis­tas em crimes sexuais. Como se pode ler no

site do advogado criminal de Las Vegas Michael Becker, a maior probabilid­ade de um advogado de defesa conseguir ilibar o seu cliente é evocando falsas alegações. Ou seja, se o advogado conseguir provar que existem dúvidas razoáveis sobre o que se passou. Falta de provas é outra forte defesa. O que quer isto dizer? A não ser que exista um vídeo onde se veja a violação, poderá cair na categoria de “ele disse/ela disse”. Por último, uma das questões mais difíceis de provar é o consentime­nto. A violação acontece quando não há consentime­nto e se o advogado de defesa conseguir provar que houve, será difícil ser condenado. Outra estratégia usada nestes casos é visar a reputação da vítima. Aliás, terá sido essa uma das estratégia­s utilizadas aquando do acordo extrajudic­ial, segundo acusou Kathryn. “Tentaram descredibi­lizar-me”, contou ao Der Spiegel. Mayorga, que apostava então numa carreira de modelo, era paga para atrair clientes para a zona VIP do Rain, no Palms Casino Resort, e fazer com que comprassem bebidas. Segundo a DerSpiegel, Ronaldo terá contratado investigad­ores para perceber o passado de Mayorga, nascida em 1984, em Las Vegas, filha de um bombeiro e de uma doméstica. Não encontrara­m nada incriminat­ório.

Liquidar o contrato

O caso terminaria com um contrato de confidenci­alidade. Para se preparem para o acordo extrajudic­ial rea-

lizaram um inquérito, de cerca de 200 perguntas, com várias questões quer a Cristiano Ronaldo quer ao primo e ao cunhado para apurar o que tinha acontecido. As duas partes encontrara­m-se a 12 de Janeiro de 2010, para assinar o acordo. Ronaldo não esteve presente, ia trocando mensagens com o advogado Osório de Castro (as tais reveladas pela Der Spiegel), em que falam de valores da indemnizaç­ão. Foram 12 horas de negociação. Foi então que Mayorga fez questão de escrever uma carta de 6 páginas para ser lida a Ronaldo. Uma exigência que fazia parte do acordo. “Espero que te apercebas daquilo que me fizeste e que tenhas aprendido com este erro terrível!! Não roubes a vida de outra mulher como roubaste a minha!! Não quero saber do teu dinheiro, isso era a última coisa que eu queria!!”

Mas nove anos depois, a 27 de Setembro, Mayorga apresentou queixa no Clark County Nevada Eighth Judicial District Court. Quer que o acordo de confidenci­alidade incluído no acordo extrajudic­ial seja anulado. Disse à revista alemã que foi inspirada pelo movimento MeToo – será obviamente uma tecla em que o seu advogado mais insistirá.

 ??  ?? Com 34 anos, Kathryn decidiu denunciar novamente o caso inspirada pelo movimento MeToo e porque nunca ultrapasso­u o que aconteceu. Depois da entrevista, está incontactá­vel
Com 34 anos, Kathryn decidiu denunciar novamente o caso inspirada pelo movimento MeToo e porque nunca ultrapasso­u o que aconteceu. Depois da entrevista, está incontactá­vel

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