“Quando a morte vier, vem”
Representa desde criança e é considerada, unanimemente, a melhor actriz portuguesa. Após uma cirurgia delicada ao coração e um tumor na tiróide, espera agora que a sua voz volte, para regressar ao pequeno ecrã e ao teatro, apesar de já não conseguir decor
Depois dos graves problemas de saúde – um cancro na tiróide e a cirurgia ao coração –, quem é a Eunice Muñoz, hoje?
A Eunice de agora é uma que espera. Espero que a minha voz melhore e espero voltar a representar. Sempre desvalorizou o que lhe aconteceu…
Sempre. Acho muito desagradável uma pessoa lamentar-se. Para quê? Para nada! Quando há dias em que não estou tão bem, não me entrego nada a isso. As pessoas que estão ao nosso lado não têm de suportar isso. Quanto mais gostam de nós, mais doloroso é para elas. Tento sempre passar por cima e isso ajuda-me muito. Raramente me lembro das coisas pesadas que passei nos últimos anos. Não melhoro por causa disso. Fica tudo igual e passo a ser uma chata.
Ainda há muita vontade de voltar aos palcos e à televisão?
Sim, há! Foi essa a minha vida durante 75 anos e, portanto, é o mais natural. Não me imagino a fazer outra coisa. Nunca me cansei da representação, até porque o actor tem essa atracção: nenhum papel é igual. Estamos sempre apaixonados.
Ainda é fácil decorar os textos?
Já não decoro. É através dos auriculares. Já estou habituada. Quem me lê os textos é a minha neta. Ela já sabe os meus tempos.
Passados estes 75 anos de carreira, falta-lhe fazer alguma coisa? Sinceramente, acho que não. Já fiz todos os géneros de teatro. Fiz revista, opereta, comédia musical e cinema. Tragédia, drama. Já fiz tudo.
Que papel a desafiaria agora?
Se alguém me convida, é, com certeza, porque é um papel interessante. A partir daí, tudo é agradável para mim. Arrepende-se de alguma coisa nestes 88 anos de vida?
Sim, claro. É impossível viver uma vida e não ter arrependimentos. Tenho vários. Quais? Ah, isso agora... Guardo só para mim [risos].
Dedicou parte da sua carreira à TVI. Não foi convidada por outra estação? Até agora, não. Nunca tive outro convite. Sou fiel à TVI porque não tenho razões em contrário. Mas evidentemente que, se me convidarem, estarei pronta a pensar nisso e a ponderar.
Vê alguma actriz da nova geração a ser uma Eunice Muñoz?
Há actrizes que já provaram que são grandes. Vejo muita televisão e vejo o que se está a passar. É muito reconfortante verificar que os talentos começam a aparecer. Pressinto, por aquilo que fazem, que vão ser grandes nomes e fazer excelentes carreiras.
Como por exemplo?
Não digo nomes, até porque posso ser injusta e não o posso ser.
Chegou a sera actriz mais bem paga da sua geração…
Chegava a receber 30 contos por mês. Naquela altura, era uma verdadeira fortuna...
Sente que, hoje em dia, essa recompensa é a mesma?
Não. As coisas mudaram todas e o dinheiro não é o mesmo, mas não penso muito nisso. Não vale a pena estar a pensar naquilo que já recebi e a comparar com o que recebo agora. É natural. A minha carreira, com a idade que tenho, está a chegar ao fim. Portanto, é normal que essa compensação material seja diferente.
Esse “fim de carreira” assusta-a? Francamente? Não. Não me assusta, porque gosto de viver. Viver é uma coisa importante para mim, e que me enche. E, mesmo quando deixar de fazer teatro, com muita pena minha, tenho sempre coisas que amo. Estou sempre entretida. Com o quê? Dedico-me à minha casa, aos meus livros, aos espectáculos a que vou assistir, à observação de futuros talentos. Tem medo de morrer? Quando a morte vier, vem. Tenho de aceitar. Quando tiver que ser, é. E não me falta fazer nada. Acho que seria muito ingrata se dissesse que faltava.
Quando é que gostava de parar? Gostava que fosse aos 90, porque, depois, não sei o que vai acontecer à cabeça e não tenho a ilusão de que vou saber sempre o que digo e a saber o que penso. Mas se sentir que ainda estou consciente, vou continuar. Quando achar que não estou capaz mentalmente, paro. Tenho seis filhos que não me deixam continuar, se não estiver bem.
Dá conselhos aos mais novos?
Não, não. Não gosto nada de dar conselhos. Acho que não tem graça nenhuma. Quanto muito dou os mais práticos: tento-lhes ensinar aquilo de que se devem defender... Eles têm que descobrir por eles próprios e ninguém é igual.
O que é que lhes falta? Há pessoas que têm a intuição necessária e há outras que não. A TV veio, por um lado, lançar novos valores, mas, por outro, leva a que os actores obtenham lugares para os quais ainda não estão preparados. Falta-lhes o teatro, mas eles sentem essa grande necessidade: a falta da escola. E é uma atitude inteligente da parte deles, e que me deixa confiante. Porque é que nunca gostou de se verna televisão?
Não gosto mesmo. Acho que criamos uma imagem nossa que não é aquela que vemos no ecrã. Não é aquela que o espelho me dá, mas isso não faz parte das minhas preocupações. A pessoa não tem noção da sua imagem e fica surpreendida. Das duas, uma: ou gosta muito ou não gosta nada. Sou o segundo caso. Mas não via as novelas onde entrava? Antigamente não. Não há dúvida de que já estou velha, porque agora já vejo e divirto-me. Ponho defeitos a mim própria, mas acho piada. Fraquezas da idade. Teve algumas desilusões profissionais, ao longo destas mais de sete décadas de trabalho?
Tive muitas, como toda a minha geração teve, com a censura odiosa que nós tínhamos. Desejo, muito sinceramente, que nunca mais ninguém possa ter esse tipo de desgosto.
Mas está a recordar esses momentos com um sorriso…
É preciso! Um sorriso é muito importante. Sorrir não custa nada, não se compra, não se vende e é bom. É bom porque a pessoa para quem sorrimos atinge uma certa paz de espírito.
Nessa época da censura, o que mais a marcou?
A censura em si marcou-me muito. Protagonizei uma peça que ensaiei, dediquei-me, apaixoneime, como sempre fiz, e, depois do espectáculo estar pronto, os senhores sentaram-se na plateia, assistiram e, no fim, disseram que não podia estar em cena. Que estava proibido.
Qual foi a sensação?
É difícil de descrever. É como se fossem bocados de ar que se vão anulando. Felizmente, o 25 de Abril acabou com isso e a vida continuou, mais sorridente. Considera-se uma revolucionária da sua época?
Por dentro fui sempre [risos]. Por fora, tentava ser o pouco que podia. Continua a trabalhar por necessidade? Temos uma reforma tão pequena que somos obrigados a isso. Nem digo qual é a minha! Não quero ter esse senti-
“Temos uma reforma tão pequena que somos obrigados a trabalhar”
mento tão pequeno e mesquinho. Em tempos, foi-nos prometido, a mim e ao Ruyde-Carv alho, que continuaríamos a ter o nosso ordenado do Teatro D. Maria, parada ruma ajudaàre forma. Isso ficou só num projecto. Aliás, está escrito. O Governo mudou, e mudou tudo. Nada se fez, nada tivemos e continuamos com esta reforma triste para quem trabalhou a vida inteira, e continua a trabalhar. Gosto muito do meu País, de ser portuguesa, e tenho um enorme desgosto em ter que contar isto. É triste, lamentável ... Nem sei que diga mais… Mas houve uma altura da sua vida que foi secretária. Porquê? Durante quatro anos, dos 23 aos 27. Estive afastada. Já tinha muitos anos de teatro. Comecei com cinco. Estava muito cansada e farta. Tinha uma necessidade enorme de conhecer outra gente e outros ambientes. Foi muito interessante e importante para voltar a representar. Foi uma experiência que me fez crescer e que me enriqueceu.
É valorizada pelos portugueses? Não quero ser injusta e serias e dissesse que não. Tenho pessoas que gostam de mim. Têm por mim qualquer coisa como um afecto, eé capaz de ser porque são muitos anos. Há muita gente que me vem pedir param e da rum beijo. É bonito.
Tenho um público devotado, meigo e atento ao que faço. Fico contente. Gosta que uma das suas netas, a Lídia, siga as suas pisadas? Ela está a caminhar ealut arpo rum lugarn are presentação. Curiosamente, tem menos convites do que seria de prever sendo uma neta minha. É curioso. Encontra algum motivo para isso? Não sei ... E latem talento, vai fazer uma carreira. Tem tudo parais soe não temo por ela. Sei que vai ter sucesso. Já está a dar esse sucesso e tenho a certeza que vai vencer. Mas tem lutado muito, ao contrário do que as pessoas possam pensar. Nãoépe lo facto de ser minha neta que lhe têm dado trabalho. Ao mesmo tempo é bonito. Vem do esforço dela. Sente-se orgulhosa por ver alguém seguir o seu caminho?
Sim, muito. Era um dos meus desejos. Elaéasuagr ande companhia?
É! Ela mora comigo desde a operação à garganta, há três anos. Mas nunca me sinto sozinha. Não tenho qualquersolidão. Tenho sempre muita coisa para ler. Sempre gostei de estar só. Entrego-me aos meus pensamentos, aos meus gatos, à televisão...
Teve três maridos. Sempre foi uma mulher de grandes paixões?
Sempre. Foi muito bom. Estar apaixonadaéa melhor coisa do Mundo. Sem---
pre fui assim. Quando estava, estava mesmo. Não pensava noutra coisa.
Já disse várias vezes que os seus pais tinham uma linda história de amor. Foi isso que procurou para si?
Foi. Sempre encontrei algumas coisas, mas aquele amor que eles tinham um pelo outro era uma ascensão. Era um casal especial. Estiveram 75 anos casados e amavam-se. O meu pai era uma pessoa divertida. Era filho de um espanholede uma italiana, portanto, estava sempre bem-disposto. Era terno. Foi ao meu pai que fui buscar esta vontade de viver. Eu tive três homens muito diferentes uns dos outros.
Como é que conseguiu conciliar tanto trabalho com seis filhos para cuidar?
Até eles crescerem, fui bastante ajudada, pela minha mãe. E tinha uma situação material mais confortável que me permitia ter empregadas para me ajudar. Os quatro do meio, que são filhos do meu segundo casamento, foram mais complicados, e teria de ser mesmo ajudada. O pai deles ajudou-me imenso e foi dedicado e colaborador comigo. Teve uma atitude fantástica. Ele gostava muito que eu fizesse teatro.
Era seu admirador?
Sem dúvida.
“Estar apaixonada é a melhor coisa do Mundo. Sempre fui assim: quando estava, estava mesmo. Não pensava noutra coisa”