TV Guia

“Dei a ganhar MILHÕES a Balsemão”

A 6 de Outubro de 1992, um homem pegou numa equipa, de homens e mulheres, de jovens e velhos, e fez-lhes acreditar que era possível uma estação privada vingar em Portugal. Três anos depois, era líder de audiências. Tocou o céu, deixou obra e jamais conse

- TEXTO PAULO ABREU | FOTOS PEDRO GARCIA

Lembra-se do dia 6 de Outubro de 1992? Claro! É impossível esquecer. Quando iniciámos a emissão, às 16:30, com um serviço de notícias lido pela Alberta [Marques Fernandes], aqueles 3,4 minutos foram empolgante­s. É uma coisa que só se vive uma vez na vida. É irrepetíve­l, uma emoção pura. Chorou?

Não. Emocionei-me. Mas vi muitas lágrimas na cara das pessoas. E sorrisos misturados. Preparámos intensamen­te aquele dia: estávamos há seis meses a fazer uma equipa, não só para tecnicamen­te escrever uma notícia, mas para entrosá-la numa determinad­a filosofia. Hoje, é impensável isso acontecer. Qual foi o seu discurso?

No fundo, foi mais ou menos isto: “Vamos arrancarnu­ma viagem que vaiserlong­a, importante e decisiva nas nossas vidas. Temos de estar bem preparados para esse efeito e temos de estar juntos. A batalha vai ser difícil, mas temos capacidade para a vencer. Não há que temer nada. Estarei sempre do vosso lado. Conto com vocês.”Este trabalho não se faz sem uma ligação afectiva. Sabe, às vezes, não se percebe por que se tem, ou não, audiência e, em regra, o que falta é a afectivida­de. Pode estar aí o segredo do sucesso. É verdade que Balsemão foi surpreendi­do com essa liderança tão precoce?

É verdade.

O que ele lhe pediu antes do arranque? Nunca me pediu para ser líder. Ele queria uma TV, o que fazia sentido para um homem que tinha já um grupo editorial com importânci­a, e, portanto, envolveu-se neste projecto. Mas ele tinha muito medo. Lembro-me de uma semana antes de 6 de Outubro, quando vivíamos um alvoroço... [pausa] Conte. Nunca contei isto a ninguém: uma semana antes, o Balsemão disseme: “Ó Rangel, ontem tive um jantar em minha casa, com uma série de pessoas, e chegámos à conclusão de que você está aqui a fazer mal uma coisa… O apresentad­or do Jornal da Noite deve sero MiguelSous­a Tavares... Podia ser só uma pessoa, mas não. Têm todos a mesma opinião. Evocê está a insistirno José Alberto Carvalho… Você devia mudar.”

E qual foi a sua resposta?

“Nem pensar!” Disse-lhe que conhecia bem o Miguel e o Zé Alberto, que sabia quais as qualidades de cada um. Fiz-lhe ver que o Zé Alberto era já um grande pivô e que ia ser infinitame­nte o melhor em Portugal. Disse-lhe também que isso nunca estaria ao alcance do Miguel, um opinion maker, um homem que pode conduzir debates, um determinad­o programa, mas que nunca seria um pivô. E não mudei a decisão.

Balsemão aceitava assim as coisas? Aceitou sempre as coisas que lhe pus em cima da mesa, com excepção do Big Brother(BB), ao fim de quase dez anos. Tirando isso, as minhas decisões foram sempre vencedoras. Julgo que também por isso a SIC teve sucesso. Aquilo era tudo bem pensado. A SIC não era um grupo de amadores que se juntava a uma mesa de jantar e punha-se a dizer: “Ah, acho que isto devia serassim.” Só para concluir: o tempo veio mostrar que eu tinha total razão. O verdadeiro pivô é o Zé Alberto.

Voltando atrás… Balsemão não lhe pediu a liderança?

Nunca. Ele queria rentabilid­ade. Sabe, ao final de muitos anos, de já sermos líderes,

“Uma semana antesdo arranque, Balsemão disse-me que o pivô do Jornal devia ser o Miguel Sousa Tavares. ‘Nem pensar’, disse-lhe”

disse-me uma coisa que não vou esquecer: “Ó Rangel, não acha que devíamos ser2.ºem vez de 1.º, para pouparmos dinheiro?” Disse-lhe para não acreditar nessa teoria, pois éramos um País pequeno e, portanto, um líder tinha 50 por cento do bolo publicitár­io e o restante ficava para os outros… As coisas dividem-se assim. Mais: pedi-lhe para nunca pensar em ser 2.º, porque, quando se quer ser 2.º, pode ser-se 3.º. Nessa altura, a SIC ganhava muito. Era uma máquina de fazer dinheiro.

No seu reinado?

Obviamente. Tirando o primeiro ano, a SIC ganhou sempre muito dinheiro.

Dizem que o senhor apresenta resultados, mas que gasta muito dinheiro.

Tenho os números comigo. O argumento fundamenta­l para rebatar essa teoria é outro. Em Agosto/Setembro, fazíamos o orçamento para o ano seguinte. Depois, era entregue à administra­ção, que fazia os cortes que queria. A seguir, tínhamos uma reunião, que às vezes durava duas semanas, para discutir esses cortes, porque eram severos e podiam pôr em causa o bom ritmo da estação. Mas era difícil mudar o orçamento. Aí a administra­ção era implacável.

Isso quer dizer o quê?

Quer dizer que eu tinha a obrigação de cumprir os orçamentos. E mais: tinha um valioso prémio todos os anos, se o cumprisse. Devo dizer-lhe que, em nove anos, ganhei sempre o prémio: uma batelada. Porque cumpria. Quanto era essa batelada de dinheiro? Nunca recebi menos de 20, 30 mil contos por ano. Só por cumprir o orçamento! E quanto dinheiro deu a ganhar a Balsemão?

Tinha de ir ver… As contas são públicas, a SIC é uma sociedade anónima. Mas posso dizer-lhe que dei a ganhar muitos milhões de contos a Balsemão. A determinad­a altura, a SIC pagou tudo o que devia, remunerou os seus accionista­s, devolveu-lhe parte do dinheiro investido na estação e já usava parte dos lucros, significat­ivos, para outros objectivos. A SIC era líder e dava muito dinheiro a ganhar. Não foi só a Balsemão. Pergunte ao Berardo, à Globo… Todos andavam felizes... [sorriso] O Big Brother é o início do fim deste casamento entre Balsemão e o senhor?

Sem dúvida. Era uma boa relação, mas que tinha uma areia no sapato…

Os tais que jantavam com Balsemão?

Por um lado, sim, mas, por outro, era a dificuldad­e de Balsemão em perceber que, apesar de ser o patrão, de ganhar muito dinheiro, quem mandava era eu.

E não mandava?

Eu mandava na Informação e nos Programas, mas não acho que tivesse poder a mais. Tinha poder para garantir à SIC a continuida­de de uma estação bem-sucedida, que dava milhões. Por isso, ele nunca me contrariou. Mas isso não significa que não discutísse­mos de forma natural, muitas semanas, e que eu não mudasse de opinião numa ou noutra coisa. Nunca nas essências, porque Balsemão não sabia nada de televisão. Não?

Não. Ele queria ser dono de uma estação, mas não sabia nada. A partir do momento em que descansou em mim e que percebeu que eu levava o barco a bom porto, foi vivendo feliz, com o muito dinheiro e o muito prestígio que a SIC lhe dava. Só que, entretanto, começou a viver mal com a circunstân­cia de não ter intervençã­o na área. Ele sempre achou que era um bocado jornalista… Um bocado jornalista não. Ele é.

Enfim, não é. Foi jornalista nos primeiros anos de vida, depois já não era. Sempre teve uma relação difícil com esse aspecto.

E isso, aliado ao Big Brother, foi decisivo para o vosso divórcio?

Sim. Eu explico. O Big Brother é uma proposta da Endemol que surge a meio do ano. Nós tínhamos o direito de preferênci­a sobre os programas deles e, um dia, o Piet-Hein veio ter comigo... Disse-me que tinha um formato forte, mas que tinha os seus problemas…

Já conhecia o formato?

Já tinha ouvido falar. Estudei o dossier e conclui que aquilo era uma complicaçã­o. O BB não era só um grande programa de TV, era uma estratégia de programaçã­o. Ou seja, se fosse parar a uma estação, sobretudo à que estivesse em último, ia causar mossa. Apreendi bem o que significav­a e levei o assunto à administra­ção. Estava a cumprir o orçamento que me tinham dado e a sua compra era uma acção não prevista, a meio do ano, que custava um milhão de contos.

E depois?

Desde a primeira hora que expliquei que era fundamenta­l controlarm­os aquele formato, perigoso se caísse nas mãos do adversário. Tínhamos o domínio das audiências e da publicidad­e, não podíamos correr riscos. Precisava que o comprássem­os para não o transmitir. Nunca pensou comprá-lo e transmiti-lo? Nunca. O BB ia completame­nte ao arrepio de toda a programaçã­o e estratégia da SIC. Por isso é que aquilo era um produto bom para estações que estivessem em último e mau para quem fosse líder.

A SIC teria de pagar um milhão de contos todos os anos para não o transmitir?

Isso logo se veria. Havia tempo e condições para negociar, tínhamos um volume de negócios apreciável com a Endemol e dávamos-lhe muito dinheiro a ganhar...

E o que lhe disse Balsemão?

“Um milhão de contos? Mas como é que você foi sempre tão confiante e está a dizer-me agora uma coisa dessas?” E contou-me que os accionista­s já tinham combinado a distribuiç­ão dos lucros desse ano: 7 milhões de contos para cada um.

Balsemão, aqui, não acreditou em si.

Não. E eu disse-lhe: “É melhor você e os accionista­s ganharem só 7 milhões de contos em vezde 8, em Dezembro, e voltara ganhar 8 no ano seguinte, porque isto vai causar danos em audiências e publicidad­e.” Balsemão reuniu a administra­ção, fui lá e voltei a explicar a todos que era importante comprar o BB. Mas seguiam a cartilha de Balsemão e ninguém acreditou que seria um programa a tirar-nos a liderança. Tínhamos 50 por cento de share e a TVI, que era última, 15. A RTP tinha 20 e tal… E decidiram não comprar. Eu, se tivesse orçamento, nem falava com eles. Tinha comprado. Fiquei furioso!

Mas continuou em Carnaxide.

Mais três meses... Depois, foi apenas o desenrolar de um processo... A minha relação com Balsemão tinha morrido. A TVI estreia, entretanto, o BB e toda a gente começou a sofrer com a perda de audiências e de publi-

“O meu último dia na SIC? Meu Deus, achei que

ia morrer de tristeza”

cidade. Aí é que o Balsemão entrou em pânico e decidiu usar os métodos da economia tradiciona­l: despedir pessoas.

Quantas?

120! E eu opus-me. Era a total falta de bom senso. A SIC começou, ergueu-se e ganhou todas as apostas com aquela equipa. E, mesmo que passasse por dificuldad­es, era com eles que iríamos dar a volta. Se Balsemão me tivesse ouvido, ainda hoje ganhava muito dinheiro. E ainda hoje eu lá estava. Acreditou que morreria na SIC?

Acreditei, francament­e. Porque tive ofertas milionária­s para sair da SIC e nunca as aceitei. Lembra-se do seu último dia na SIC?

Claro. Se estava furioso? Não, aí não. Porquê?

Por causa dos últimos dias. Balsemão tenta encontrar um lugar para mim na estrutura, para eu deixar de ser director de Programas e de Informação, e é aí que entram uma série de pessoas…

Quem?

[Incomodado] Manuel Fonseca, Nuno Santos… As pessoas perdem a cabeça quando sentem o cheiro do poder. Até o carácter lhes foge do corpo.

E como foi o seu último dia na SIC? Saí com uma enorme tristeza, meu Deus… Achei que ia morrer de tristeza… Quando disse a Balsemão que me ia embora, ele tentou demover-me. Como isso era impossível, acompanhou-me à porta. E despedimo-nos… O que disseram um ao outro?

Ele tinha lágrimas nos olhos e disse-me: “Você vai-se embora porque quer…” Eu respondi-lhe que era verdade, mas que não conseguia trabalhar assim.

Nunca mais falaram?

Cumpriment­ámo-nos uma vez, acenando ao longe. Quando estamos num sítio, ele vai por um lado e eu por outro. É melhor assim. Perdoa-o, hoje?

Fiquei abalado por ver um projecto fabuloso, que poderia ser hoje uma coisa fantástica, ser feito às três pancadas. Fiz muita coisa na SIC, mas tinha outras para fazer. E Balsemão, de uma penada, deu um safanão na SIC, que praticamen­te o faz perder dinheiro e prestígio, todos os anos. O meu sentimento é de pena. Claro que, a partir daí, ele passou a ser o presidente do conselho de administra­ção, director de Programas e de Informação. Como?

Sim. Ele diz para ir fazer, e faz-se. Dizem que ele não se intromete. [encolhe os ombros e sorri] Não...

Arrepende-se de ter confiado em certas pessoas?

Não. No início, falei na afectivida­de entre as

pessoas e, portanto, se, porventura, aparece um oportunist­a e um traidor pelo meio, é um risco que pessoas como eu têm de correr. Eu funciono de peito aberto, sou frontal e dou tudo por essas pessoas.

E do que se orgulha de ter feito?

De ter criado uma grande equipa, de ser capaz de ir à luta e de ganhar as batalhas. Havia uma lógica de confiança muito forte e isso não se apaga. Não tenho dúvidas de que fomos uma das melhores estações da Europa.

 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal