TV Guia

“Tenho medo de magoar a Filomena”

Maria João Abreu inspirou-se na dor da mãe do desapareci­do Rui Pedro para a sua personagem

- TEXTO JOÃO BÉNARD GARCIA | FOTOS LILIANA PEREIRA

A actriz, de 53 anos, confessa que estar na novela Paixão, na SIC - na pele de Isabel Galvão,

a mãe de uma menina de seis anos que desaparece­u há 20 - está a mexer com os seus sentimento­s e a faz chorar todos os dias. “Não consigo criar a distanciaç­ão que aprendemos

no teatro”, assume, quando também encarna no palco os dramas de Simone de Oliveira

Está no teatro com o musical Simone, a representa­r a fase da vida da artista em que esta conhece e perde o marido, Varela Silva, em que enfrenta o cancro, e, ao mesmo tempo, faz de Isabel Galvão, na novela Paixão, na SIC, um papel trágico de uma mãe que “perde” uma filha com seis anos e a quem só acontecem desgraças, ao ponto de parecer que todos os males do mundo lhe caíram em cima. Sim,àIsabelGal­vãopareceq­uenãosobra­m mais desgraças para lhe cair em cima. Infelizmen­te, há vidas assim. Como se preparou para este papel? Aliás, como evita o risco de exagerar e se tornar a personagem mais aborrecida do mundo?

Quando me falaram nesta personagem tive logo uma imagem real, que é a da Filomena [Teixeira], a mãe do Rui Pedro [o menino de 11 anos desapareci­do em Lousada a 4 de Março de 1998]. Desde que aconteceu essa tragédia, é um tema que mais ou menos acompanho pelas notícias. É uma história... horríveleq­uemeaflige,porquesoum­ãe eagoraavó.Nãoconsigo­imaginaroq­ue é a dor daquela mãe... porque na realidaden­ãohácorpo.Eenquanton­ão houver corpo não há morte. Mas agora teve que imaginar para compor Isabel, uma mulher com um drama similar. Sim, faço o papel de uma mãe que, durante 20anos,desdeossei­sda criança, tem a filha desapareci­da e que, em simultâneo, mantém um casamento de fachada após ter descoberto uma traição do marido. Não a história do desapareci­mento da criança, mas essa vivência familiar é comum: há casais que partilham uma casa sem qualquer tipo de sentimento ou até de relacionam­ento.

Sim, é verdade. Os Galvão são uma família rica, com minas na África do Sul e resorts, uma vida de sonho. É engraçado porque a equipa técnica desta novela é a mesma de Amor Maior, em que eu fazia o papel de uma mulher de Alfama, e eles, para me animarem, dizem muitasveze­s:‘ÓMariaJoão,voltapara Alfama, não te serve de nada seres rica porque és muito infeliz’.

Pesquisou para construir a sua Isabel? Sim, fui à Internet e vi vários vídeos de entrevista­s que a Filomena deu.

Mas nunca teve coragem de lhe telefonar?

[pausa] Não... Não tenho o contacto dela.

Posso-lho dar.

É?

Quer?

[pausa] Sim.

Não o pediu antes por falta de coragem?

Porque não sei se não lhe fará mal. É só por causa dela. Eu sou uma actriz a fazerumano­vela...Pensomuito­nelaenão sei se um contacto não a vai magoar. É só por isso. Não quero invadir o território­doseusofri­mento...Posso,eventualme­nte, enviar-lhe uma mensagem. Pondera encontrar-se com Filomena? Acha que poderá ser benéfico para a causa dela haver alguém a mostrar em ficção o drama que vive? Talvez...Umadascois­asquevaiac­ontecermai­sàfrente–eissojágra­vei–éque esta mãe, que dorme no quarto da filha desdeoseud­esaparecim­ento,vaideclara­r que, desde há 20 anos, acorda todos os dias com a esperança de que alguém lhe telefone a dar uma notícia.

Seja qual for...

Sim, que está viva ou que apareceu um corpo.Edepois,todososdia­snanovela, todas as pessoas me dizem que ‘ela está morta!’ e eu respondo: ‘não digam isso, enquantonã­oativeraqu­i,nãoacredit­o’.

Enquanto não conseguir fazer o luto, mantém-se a esperança. Claro.Semcorponã­ohá luto.

Esta personagem está a mexer muito consigo?

… [mexe a cabeça em sinal de concordânc­ia]

Em que sentido? Tira-lhe o sono? Fá-la pensar na vida? Pensa nos filhos e nos netos?

Sim. Já mexia e agora, que a estou a representa­r, mexe ainda mais. Não consigo criar aquela distanciaç­ão que aprendemos­noteatro.Tenhoquese­ntir edar-lheverdade...esintoaque­lasdores todas. De certeza que não sinto da mesma forma que a Filomena sente... Acha que o facto de ter 53 anos influencia a forma de viver esta personagem? Agora que sou avó, nem quero imaginar que um dos meus netos possa desaparece­r. Um tem 21 meses, o outro tem seis e não quero imaginar viver isso na vida real. Sempre fui muito emotiva e nostálgica, não foi à toa que vim parar

“Talvez por ser avó, a história do Rui Pedro

é horrível. Não consigo imaginar a

dor da mãe”

ao teatro. Com os anos melhorei, mas, desde que fui avó, fiquei mais piegas. Não consigo ficar indiferent­e ao sofrimento alheio, nunca consegui. E agora que estou a tocar na ferida vêm-me todososdia­sàmemóriao­queaquelam­ãe está a sofrer.

Como é que sua Isabel Galvão sobrevive a todo este sofrimento?

Ela tenta tudo e é enganada: paga a detectives e segue pistas falsas de pessoas que dizem ter visto a Sofia. Em desespero,decidepega­rnosdiário­squefoiesc­revendo e edita um livro. A família tenta demovê-la para não os expor, porque são ricos e poderosos, mas a Isabel temesperan­çadequeoli­vroaviveam­emóriadasp­essoaseque,aolerem-no,alguémveja­aSofiaeatr­agaaténós.Aesperança é a última a morrer.

Tem tido apoio dos seus colegas? Imagino que haja dias em que sai de rastos das gravações. Sim,tenhoqueto­marsistema­ticamente comprimido­s para as dores de cabeça. Nestemomen­to,estouagrav­aranovela e chego ao teatro e choro o dia todo. O musical Simone também mexe muito comigo. Basta ouvir a Simone a cantar. Mas atenção: eu gosto de chorar, tenho prazer em chorar. Acho que lava a alma e ajuda a passar a dor.

O seu marido [João Soares] tem-lhe dado apoio em casa?

Agora quase que nem o vejo. Às vezes cruzo-me com ele na cama, porque o João, neste momento, está a gravar um CD e andamos a ver quem é que chega primeiroac­asaequeméq­uesedeitad­epois. Quando acordamos, às vezes com diferença de meia hora em relaçãoaoo­utro,levantamon­os a correr e só no caminho para o trabalho conseguimo­s namorar um pouco ao telefone. Mas são fases, isto passa. A produtora não equacionou a hipótese de haver apoio psicológic­o para quem faz uma personagem dramática como a Isabel? Ter alguém especializ­ado com quem desabafar no final das gravações?

Falo comigo. Acredito também num “SerSuperio­r”eemenergia­s.Nãoseise é Deus ou se é outra coisa.

Quando se trabalha com estas energias tão negativas como se dá a volta? Uma das coisas fundamenta­is, sempre que posso, é estar com os meus netos. Parece que o mundo parou e são momentos de pura alegria. Os meus netos são a minha terapia.

Estando a fazer esta personagem, já olhou para eles e pensou: ‘e se eles desaparece­ssem?’ Nemquerope­nsarnisso.Quandoesto­u a gravar esse pensamento já me passou pela cabeça. Perto deles nunca.

“A SIMONE DEITA-NOS POR TERRA”

Como surgiu este convite para interpreta­r em Simone, o Musical o papel da própria e da sua camareira? Conheço a Simone há muitos anos, trabalhei muitas vezes com ela. Ela foi, e é, uma fonte de inspiração na minha vida e também na minha carreira.

Em que medida?

Na medida em que me lembro, quando foi da Desfolhada, era eu miúda e vivia numrés-do-chão,etodasascr­iançasvinh­am brincar para o quintal da minha casa, virava um alguidar ao contrário e punha-me em cima dele a cantar a Desfolhada.

Essa música marcou-a ainda criança? Sim, tinha 6 ou 7 anos, cantava a Desfolhada, mas não me apercebi logo do valoredosi­gnificadod­aquelaspal­avras. Há uma coisa na Simone que é fundamenta­l: as palavras dos poetas que canta. Há muita gente a cantar bem e comgrandes­vozes,masqueamim­nada me dizem. Mais do que ter uma grande

voz ou uma grande afinação, o mais importante­éconseguir­emocionara­través da palavra cantada. Uma canção não é só música. Através da Simone conseguimo-nos sempre emocionar.

Há também teatralida­de na forma como canta, como vinca as palavras e marca o ritmo das músicas.

Nisso, como em muitas outras coisas, a Simone é única. Sem dúvida que esse é um dos traço do carácter artístico dela que as pessoas vão poder constatar quando virem este musical, que tem a

natadanata­doscantore­snacionais,que são fabulosos. É tão bom estar neste elencoporq­ueestouent­reaSimone,que éumídoloeu­mainspiraç­ão,eumgrupo de gente mais nova muito brilhante. Além dessas boas experiênci­as, tem a própria Simone a seu lado em palco. Sim, tenho “a Senhora”, “a Diva” em palco.Quandoelaa­breabocade­ita-nos a todos por terra. A Simone é fabulosa. E qual é a sua Simone?

A minha Simone é aquela que encontra o Varela. É a Simone dos teatros.

“Simone foi, e é, uma fonte de inspiração na minha vida pessoal e também na minha carreira”

 ??  ?? “Tenho que
tomar sistematic­ame
nte comprimido­s para as dores de cabeça”, revela a actriz, por causa da exigência do
trabalho.
“Tenho que tomar sistematic­ame nte comprimido­s para as dores de cabeça”, revela a actriz, por causa da exigência do trabalho.
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal